Carta aberta dos evangélicos aos membros do Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional sobre a ADPF 442 e a descriminalização do aborto

Brasília, 28 de agosto de 2023.

Tu criaste o íntimo do meu ser
e me teceste no ventre de minha mãe.
Eu te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável.
Tuas obras são maravilhosas!
Digo isso com convicção.
Meus ossos não estavam escondidos de ti
quando em secreto fui formado
e entretecido como nas profundezas da terra.
Os teus olhos viram o meu embrião;
todos os dias determinados para mim
foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir.
Salmos 139.13-16

Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal,
Excelentíssimos Senadores e Deputados Federais,

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 (ADPF 442), que tem por objetivo descriminalizar a realização de aborto voluntário até a 12ª semana de gestação, encontra-se próxima de ser incluída em pauta para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 

A expectativa em torno da iminente apreciação da ação tem mobilizado a sociedade civil organizada na defesa do direito à vida do nascituro. Em 8 de agosto deste ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), através de sua Comissão Episcopal para a Vida e a Família, emitiu uma carta a todos os bispos católico-romanos no Brasil, trazendo orientações acerca da ADPF 442 e da importância da defesa da vida, solicitando a realização de preces contra a descriminalização do aborto.

Conscientes dos graves prejuízos que eventual decisão ocasionaria à proteção ao direito fundamental à vida do nascituro em nosso país, nós, pastores, líderes e entidades evangélicas, junto à Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), vimos, por meio da presente Carta Aberta, expor a Vossas Excelências nossa posição contrária à pretensão suscitada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442.

A dignidade humana e a proteção à vida desde a concepção

Não matarás.
Êxodo 20:13

A fé cristã nos ensina que o homem e a mulher foram criados à imagem e semelhança de Deus, de modo que cada ser humano é portador de uma dignidade intrínseca e inalienável, conferida pelo próprio Criador. A vida humana, assim, é uma dádiva divina e, como tal, deve ser respeitada e protegida desde o momento da concepção até sua morte natural.

O referido ditame ético encontra equivalência no ordenamento jurídico de nosso país, profundamente influenciado pela fé cristã. A Constituição, em seu artigo 1º, inciso III, estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Semelhantemente, a Convenção Americana dos Direitos Humanos, internalizada no ordenamento pátrio com status supralegal, consagrou o direito à vida, em geral, desde a concepção:

Artigo 4, 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.

Em resposta ao imperativo respeito à dignidade da pessoa humana, a Constituição da República declara inviolável o direito à vida (art. 5º, caput e XXXVIII, alínea d). Como ensina José Afonso da Silva, “de nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a liberdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos”. Fonte e pressuposto de todos os demais bens jurídicos, a defesa dos direitos humanos fundamentais restaria sem sentido se não houvesse, primária e efetivamente, a defesa do direito à vida.

A vida se inicia na concepção, a qual se concretiza por meio do processo da fecundação. Sabe-se que, uma vez unidas as células gaméticas, ativa-se um novo projeto-programa orgânico, pelo qual se pode afirmar a existência do nascituro enquanto sujeito determinado e individualizado. Esse desenvolvimento orgânico, assim como qualquer de seus estágios posteriores, representa somente um progresso contínuo do mesmo indivíduo singular e autônomo que, conquanto dependente, não é parte integrante de sua mãe.

A garantia do direito à vida humana em todas as etapas de seu desenvolvimento é perseguida pelo Estado Brasileiro, tanto pela promoção positiva desse direito, quanto por penalidades aplicadas quando este é violado, por meio de sanções civis e penais cabíveis. Nessa perspectiva, o Código Civil confere ao nascituro direitos patrimoniais (art. 542), bem como os direitos civis de modo geral (art. 2º), e a jurisprudência lhe concede, inclusive, legitimidade para ser indenizado por danos morais.

De forma correspondente à proteção penal à vida humana adulta, o legislador pátrio estabeleceu a proteção da vida humana uterina através da criminalização da prática do aborto, tipificada nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal. Não obstante, o direito brasileiro prevê três excludentes de ilicitude: tais são as hipóteses do “aborto necessário”, feito para salvar a vida da gestante; do chamado “aborto sentimental”, possível quando a gravidez deriva de estupro; e da prática do aborto de fetos anencefálicos, reconhecida pelo STF em sede de julgamento da ADPF 54.

A questão da dignidade e direito à vida do nascituro.

Então o Senhor perguntou a Caim: “Onde está seu irmão Abel?”
Respondeu ele: “Não sei; sou eu o responsável por meu irmão?”
Gênesis 4:9

Apesar da existência de tais exceções, em 08 de março de 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal a ADPF 442. Nesta ação, seus autores alegam que a criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação ofenderia os “direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à igualdade de gênero, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar”. Assim, mais de 30 anos após a promulgação da Constituição Cidadã, requerem os autores que a Suprema Corte declare a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas de gestação do seu âmbito de incidência dos tipos penais. Buscam, desse modo, a descriminalização da conduta do abortamento, fundados na necessidade de “garantir às mulheres o direito constitucional à interrupção da gestação”, isto é, do aborto.

Ao longo dos 30 anos desde a promulgação de nossa Carta Magna, não houve qualquer alteração dos fatos biológicos conhecidos que justifique uma reapreciação jurisdicional que negue ou reduza a dignidade e a proteção estatal ao nascituro. Pelo contrário, o paradigma trimestral de viabilidade fetal, suscitado pelos autores a partir do precedente norte-americano de Roe v. Wade, foi superado e revisto, tanto pelos avanços da ciência médica quanto pela própria jurisprudência estadunidense que primeiro o estabeleceu. 

Inalterados os fatos biológicos e as balizas normativas, nenhuma nova hermenêutica se justifica a ser aplicada à situação fática de origem de modo a sustentar sua não recepção pela ordem constitucional vigente. A Constituição afirma a dignidade humana e a proteção ao direito à vida. Em síntese, onde há vida humana, há dignidade humana, e, onde há dignidade humana, há um direito fundamental à vida. Por esse motivo, a vida humana deve ser preservada em toda a sua extensão, desde a concepção. 

A resolução dos casos de colisão entre o direito à vida do nascituro e outros direitos fundamentais é devidamente regulamentada pelo legislador pátrio na ordem vigente através das excludentes de ilicitude. Se até o momento o regramento sobre o aborto não foi alterado, isso deriva do fato de que a vontade e os valores do povo brasileiro permanecem inalteradas, como se observa pelos projetos legislativos rejeitados por seus representantes.

Incapaz de convencer os cidadãos brasileiros e seus representantes eleitos a promover a legalização do aborto pela via democrática competente e usual, isto é, o Poder Legislativo, o partido autor busca a alteração das normas vigentes através do Supremo Tribunal Federal, representante máximo do Poder Judiciário. Entretanto, o Poder Judiciário não se constitui como lugar adequado para o debate democrático visando a alteração legislativa, visto que carece de competência institucional e legitimidade para tanto. A edição de normas jurídicas criminalizantes é função do Poder Legislativo que, na figura do Congresso Nacional, o faz como representante privilegiado da vontade popular na democracia brasileira. 

Não existe omissão por parte do Poder Legislativo que justifique a transferência de sua competência própria. Eventual decisão do Supremo Tribunal Federal que resulte na alteração da proteção penal à vida humana do nascituro até a 12ª semana de gestação constituiria uma usurpação, não somente das competências do Poder Legislativo, mas da voz de mais de 150 milhões de eleitores brasileiros, representados pelos deputados e senadores eleitos através de seu voto direto. Retirar-se-ia, assim, o poder decisório acerca das normas protetivas à vida humana de seu fórum composto pelos representantes diretos do povo, ignorando e enfraquecendo o processo democrático estabelecido em nosso país. 

Resposta: a reafirmação da personalidade e dignidade humana do nascituro.

Disse o Senhor: “O que foi que você fez? Escute!
Da terra o sangue do seu irmão está clamando.
Gênesis 4:10

Caso o Supremo Tribunal Federal decida pela procedência da ADPF 442, retirar-se-á, condicionado ao consentimento materno, toda a proteção estatal à vida do ser humano até a 12ª semana de seu desenvolvimento, em violação ao princípio da vedação à proteção insuficiente (Untermassverbot). Ficará, assim, estabelecido um período da vida humana no qual, em seu mais frágil estágio, a violação à sua integridade que cause sua morte não resultará em sanção penal.  Pelo contrário, tal violência e morte de inocentes será sancionada e protegida pelo Estado Brasileiro.

A solução de mazelas sociais brasileiras não pode se dar ao custo de sangue inocente. Defrontados com a fragilidade do nascituro e de sua mãe, que carrega o fardo de sua gestação, a resposta não pode ser o estabelecimento de uma cultura de morte, com a negação da dignidade do ser humano nos primeiros momentos de existência. Não: como o Bom Samaritano, somos chamados, pelo Senhor e pela necessidade do próximo, a nos debruçar com amor e cuidado. 

Cabe, então, ao Estado Brasileiro, em colaboração com a sociedade civil organizada, reafirmar o valor da vida humana por meio de políticas e ações que visem à promoção simultânea do bem-estar e florescimento humano da mulher e do bebê. Frente às dificuldades enfrentadas pelas mulheres brasileiras, é preciso afastar os malignos incentivos econômicos e sociais à prática do aborto. 

Isso somente será alcançado através do melhoramento de redes de apoio, públicas e privadas, para assistência às mulheres, bebês e suas famílias, de modo que sejam resguardados em todas as fases do processo gestacional, da maternidade e da infância. De igual modo, é necessário o fortalecimento das práticas e instituições da adoção e da entrega voluntária, de modo a viabilizar alternativas que resguardem a vida do nascituro e a liberdade de suas mães. 

Conclusão

“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se,
seja o defensor de todos os desamparados.
Erga a voz e julgue com justiça;
defenda os direitos dos pobres e dos necessitados”.
Provérbios 31:8-9

Somente através do desenvolvimento de um cultura de vida, que enxergue na fragilidade da gestante e do nascituro uma dádiva a ser recebida pela comunidade política, é que poderemos prosseguir a construção de uma nação pacífica e próspera, onde, sob a proteção de Deus, reine a justiça e concórdia em prol do florescimento humano para todos. Para tanto, é preciso que rejeitemos o aborto e todas as práticas injustas que neguem a dignidade do próximo enquanto ser humano e Imago Dei.

Desse modo, nós, pastores, líderes e entidades evangélicas, junto à Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), afirmamos nossa posição contrária à prática do aborto voluntário, manifestando  nossa oposição à pretensão suscitada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442. 

Assim, em fidelidade ao compromisso do Evangelho com a justiça em favor dos mais fracos e vulneráveis, conclamamos Vossas Excelências a atuarem em defesa da vida dos mais indefesos dos seres humanos: aqueles que ainda não nasceram.

Por fim, reafirmamos nosso compromisso com a dignidade da pessoa humana e a proteção ao direito à vida, comprometendo-nos a atuar em sua defesa e promoção por todas as vias possíveis, dentro dos limites do Estado Democrático de Direito. 

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

Deputado Federal Silas Câmara
Presidente da Frente Parlamentar Evangélica
do Congresso Nacional

Dr. Matheus Carvalho Dias
Diretor Executivo da ANAJURE

Pr. Samuel Câmara
Pastor Presidente da Convenção das
Assembleias de Deus no Brasil (CADB)

Pastor Presidente da Igreja Evangélica
Assembleia de Deus em Belém do Pará 

Pr. Hilquias da Anunciação Paim
Presidente da Convenção Batista Brasileira (CBB)

Pr. Felipe Ahrens Espindola
Presidente da Convenção Batista Nacional (CBN)

Bp. Adonias Pereira do Lago
Bispo Presidente da Associação da Igreja Metodista

Rev. Roberto Brasileiro
Presidente do Supremo Concílio
da Igreja Presbiteriana do Brasil

Pastor da Igreja Presbiteriana do Bairro Constantino 

Pr. Marcos Elias da Silva
Presidente da Convenção das Igrejas Batistas Independentes (CIBI) 

Bp. José Ildo Swartele de Mello
Bispo Presidente da Igreja Metodista Livre

Pr. Olgálvaro Bastos Junior
Presidente da Aliança Cristã Evangélica Brasileira
Ministério Sal da Terra

Pr. Edson Rebustini
Presidente do Conselho de Pastores do Estado de São Paulo (CPESP)

Rev. Mauro Fernando Meister
Diretor Executivo da Associação Internacional de Escolas Cristãs (ACSI Brasil) e Pastor titular da Igreja Presbiteriana Barra Funda

Guilherme de Carvalho
Diretor da Associação L’Abri Brasil, Presidente da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência – ABC² e pastor da Igreja Esperança

Pr. Michel Ferreira Piragine
Presidente da Primeira Igreja Batista de Curitiba 

Antônio Cirino Ferro
Presidente do Conselho de Ministros
Evangélicos do Paraná (COMEP)

John McAlister
Pastor titular da Catedral das
Igrejas Cristãs Nova Vida

Levi Capellari dos Santos
Presidente do Conselho de Ministros
Evangélicos de Guarulhos (COMEG)

Silas Zdrojewski
Pastor da Primeira Igreja Quadrangular em Curitiba

Eduardo Goya
Presidente da Convenção das Igrejas Evangélicas Holiness do Brasil

Cleómines Anacleto de Figueiredo
Pastor titular da Igreja Presbiteriana Metropolitana de Belo Horizonte – MG

André Ribeiro de Mendonça
Presidente do Conselho de Pastores de Barretos

Pr. Edson Luiz Mesquita
Pastor Sênior Representante da Primeira Igreja Batista em Blumenau

Edilson Renzetti
Diretor Executivo da Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM)

Craig Austin DeLille
Diretor-Presidente da Missão SAIM

Edward Gomes da Luz
Representante da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB)

Luiz Sérgio Freitas Ribeiro
Presidente da Missão Juvep

Pr. Marcos Galdino de Lima Júnior
Pastor Presidente da Assembleia de Deus
em Santo Amaro

Gilson da Silva
Presidente da Missão Evangélica aos Índios do Brasil (MEIB)

Renato Jordão Belzoff
Coordenador Nacional da Aliança Evangélica Pró-Quilombola do Brasil (AEPQB) 

Lourival Dias Neto
Presidente da Assembleia de Deus de
Sobradinho, Brasília/DF

Márcio Ribeiro Martins
Representante da Comunidade Vida Plena

Gerhard Fuchs
Presidente do Fundo Cristão de
Investimento Estratégico (FCI)

Lázaro Rodrigues de Andrade
Pastor da Igreja da Família

José Wilson Araújo
Representante do Conselho de Pastores e Líderes do Eusébio (CE) e da Igreja Pentecostal Internacional Tempo de Colher 

Luiz Roberto Soares Silvado
Pastor da Igreja Batista do Bacacheri

Pr. Paulo César Ferreira de Camargo
Pastor titular da Igreja Eterna Aliança
de Ponta Grossa/PR

Pr. William da Silva Oliveira
Pastor da Primeira Igreja Batista
Fundamentalista de Feira de Santana/BA 

Anderson Nunes de Santana Castro
Pastor Sênior da Igreja Evangélica Missionária Betesda

Diego Bitencourt
Pastor titular da Igreja Calvary Campo

Wilson Flávio Strasse
Chefe Nacional e Presidente da Igreja Exército da Salvação

Paulo Cesar Alves Boschi
Pastor titular da Primeira Igreja Presbiteriana de Araras

Marcos Heleno de Sousa
Pastor da Igreja Evangélica do Evangelho de Jesus Cristo (SP)

Anselmo de Souza Melo
Presidente da Associação de Pastores Evangélicos de Limeira (APEL)

Marciano Batista Ortencio
Presidente do Núcleo de Comunhão Pastoral de Curitiba

Rovanildo Vieira Soares
Presidente da União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil (UIECB)

Mario Jorge Castelani
Diretor Geral da Associação Batista Educacionbal da Penha (SP) – (ABEP)

Décio Tsuyoshi Sassak
Pastor da Igreja de Cristo, Ministério Talmidim

Paulo Roberto Obino Cunha Junior
Igreja Reformada Vertical (Blumenau – SC)

Clériston Tenório de Amorim
Diretor da Anjor Ensino e Consultoria de Refugiados

José Luciano Pessoa de Paiva
Presidente Associação de Pastores da Paraíba (APEP)