Nota pública sobre a participação de grupos religiosos no processo eleitoral de 2022

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, vem, através do presente expediente, expor às organizações religiosas, aos órgãos e entidades públicas, e à sociedade brasileira o seu entendimento acerca da participação político-social dos grupos religiosos no processo eleitoral.

1 – Orientações quanto aos limites de atuação de organizações religiosas no processo eleitoral

O período eleitoral é um momento que, por seu caráter essencialmente democrático, é aberto a pessoas dotadas das mais diversas convicções, inclusive as religiosas. Isso abrange tanto os indivíduos que pretendem concorrer a um cargo político quanto os eleitores. Trata-se de uma decorrência da proteção constitucional ao pluralismo político (art. 1º, V, CRFB), à liberdade de consciência e crença (art. 5º, VI, CRFB) e à objeção de consciência (art. 5º, VIII, CRFB).

Nesse sentido, não se admite em nosso ordenamento jurídico que alguém seja privado de direitos – o que inclui os direitos políticos – por razões de ordem religiosa. Ainda assim, é necessário que sejam observados alguns limites na interação entre fé e política, especialmente para a conservação do equilíbrio entre os concorrentes do pleito eleitoral. Diante disso, foram estabelecidas algumas diretrizes a serem respeitadas pelas organizações religiosas na legislação e na jurisprudência de âmbito eleitoral, sobre as quais discorre-se a seguir.

I) Doação a partido ou candidato por entidade religiosa

O art. 24, VIII, da Lei n. 9.504/97 (Lei das Eleições), veda que partidos e candidatos recebam doações diretas ou indiretas, em dinheiro ou estimáveis em dinheiro, inclusive através de publicidade, de entidades beneficentes e religiosas.

II) Uso do espaço de templos religiosos para veiculação de propaganda eleitoral

O art. 37, § 4º, da Lei n. 9.504/97, classifica os templos religiosos como bens de uso comum, para fins eleitorais, o que faz com que não seja possível realizar propaganda eleitoral neles, seja por meio de placas, estandartes, faixas, cavaletes e outros. O propósito do dispositivo é evitar a utilização de um espaço para privilegiar determinados candidatos e, por consequência, gerar um possível desequilíbrio no pleito eleitoral. Sobre isso, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) afirmou:

A aplicação da regra que estende a natureza de bem de uso comum aos bens particulares deve ser vista com reservas, e aplicada em casos em que há demonstração cabal de livre acesso à população que justifique a possibilidade de a propaganda ali afixada gerar desequilíbrio no pleito[1].

Em caso específico de propaganda eleitoral no espaço de templo religioso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se posicionou pela ocorrência de ato ilícito ainda que não caracterizado o pedido expresso de voto:

1. Extrai–se do aresto regional que, durante a cerimônia realizada no templo religioso, na esteira do anúncio do “Projeto Consciência Cidadã”, os pastores levaram ao conhecimento dos presentes a intenção de indicar Rebeca Lucena de Souza Santos para concorrer ao cargo de Deputado Estadual por Pernambuco, pedindo engajamento e orações dos fiéis tanto ao projeto como à candidatura mencionados a partir daquele momento, sem veicularem pedido explícito de voto.

2. Este Tribunal Superior, a partir da análise do REspe nº 0600227–31.2018, passou a compreender que, quando realizada em circunstâncias proscritas pelo marco normativo vigente, a exaltação de divulgação de qualidades próprias ou de projetos políticos, ainda que sem a veiculação de pedido expresso de voto, caracteriza ilícito eleitoral[2].

III) Apresentação de candidatos em encontros religiosos públicos

Não se veda que candidatos sejam apresentados em encontros religiosos públicos, mas não é possível que isso seja feito com o caráter de propaganda eleitoral, por meio de exaltação pessoal do sujeito. Nesse sentido, vale mencionar decisão do TSE:

O candidato que presencia atos tidos como abusivos e deixa a posição de mero expectador para, assumindo os riscos inerentes, participar diretamente do evento e potencializar a exposição da sua imagem não pode ser considerado mero beneficiário. O seu agir, comparecendo no palco em pé e ao lado do orador, que o elogia e o aponta como o melhor representante do povo, caracteriza-o como partícipe e responsável pelos atos que buscam a difusão da sua imagem em relevo direto e maior do que o que seria atingido pela simples referência à sua pessoa ou à sua presença na plateia (ou em outro local).[3]

Corroborando o exposto, menciona-se ainda decisão proferida pelo TRE/PE:

A participação em eventos religiosos, por si só, não configura o abuso de poder econômico ou político, sendo imprescindível, a partir de elementos objetivos, a demonstração do caráter eleitoral da conduta para a  sua caracterização. (…) Não restou comprovado a prática de atos apta a caracterizar o abuso do poder econômico e a conotação eleitoral na participação da recorrida no evento religioso[4].

IV) Discussão e ensino sobre direitos políticos em diálogo com princípios e dogmas de fé

A legislação eleitoral não veda que a organização religiosa, fazendo uso da sua liberdade de manifestação e expressão (art. 5º, VI, VII e VII, da CF/88), ensine aos fiéis sobre princípios, dogmas e fundamentos da sua confissão de fé acerca dos direitos políticos e da melhor perspectiva sobre a vida e sociedade. Assim, as organizações religiosas podem realizar palestras, seminários ou outro tipo de reunião (inclusive em auditórios) com o propósito específico de proporcionar conscientização política, à luz das suas convicções morais e religiosas.

V. Apoio de religiosos a candidatos políticos

Conforme já exposto, a mera adoção de uma confissão de fé não impede o indivíduo de manifestar suas preferências políticas em âmbito público e privado. Isso se aplica a todos os cidadãos, sejam eles adeptos de uma religião institucionalmente consolidada ou não.

É preciso distinguir, todavia, o religioso, enquanto pessoa física, e a organização religiosa, enquanto pessoa jurídica. No primeiro caso, em regra, não há restrições ao proferimento de discurso político. No segundo, nos termos já vistos, há que se observar o impedimento à realização de propaganda política nos templos religiosos. De modo semelhante, enquanto se veda às entidades religiosas (pessoas jurídicas) a entrega de doações aos candidatos políticos, não há disposição idêntica para indivíduos religiosos (pessoas físicas), que, se desejarem, poderão investir em campanhas políticas, observando os limites estabelecidos pela legislação eleitoral[5].

O que se extrai, dessa forma, é que eventual apoio institucional de organizações religiosas a candidatos não será compatível com a legislação eleitoral.

VI) Candidatura de ministros religiosos a cargos eletivos.

Quanto aos ministros religiosos que se candidatam a cargos eletivos, não há, na lei, nenhuma exigência de afastamento do exercício ministerial, de modo que não há tal necessidade. Não obstante, aqueles que se encontrem nessa condição devem tomar as cautelas necessárias para não transformarem o púlpito em um local de propaganda eleitoral.

VII) Abuso de poder religioso

Recentemente, tramitou perante o TSE o REspe 8285, no qual se discutiu a figura do abuso de poder religioso (o leitor pode conferir manifestação anterior da ANAJURE a respeito). Conforme argumentado pela ANAJURE em outra ocasião, o abuso de poder religioso não possui previsão legal e a falta de contornos claros (e legais) sobre a conduta trazia o risco de silenciamento de religiosos sobre questões políticas.

Nos termos do ordenamento jurídico brasileiro, existem determinadas balizas para as organizações e pessoas religiosas, como a vedação à propaganda em templos e a doação pelas referidas organizações aos candidatos. Não é possível, contudo, extrapolar o texto legal para impor restrições que podem limitar indevidamente o diálogo pelos religiosos.

Se, por um lado, o TSE rejeitou a configuração do abuso de poder religioso como uma categoria ilícita autônoma, por outro, ressaltou a possibilidade de que líderes religiosos cometam outras espécies de abusos previstas em lei, como o abuso de poder político e de poder econômico. Quanto a essas, é importante que os religiosos mantenham a cautela e, assim evitem a prática de ilícitos eleitorais.  A seguir, transcreve-se trecho da decisão proferida pelo TSE:

(…) 1. Existentes outros mecanismos aptos a sancionar condutas irregulares eventualmente perpetradas por instituições e líderes eclesiásticos no decurso das campanhas eleitorais, resulta inviável a compreensão do abuso de poder de autoridade religiosa como categoria ilícita autônoma, designadamente em face da inexistência de alusão expressa no marco regulatório da ação de investigação judicial eleitoral.  2. A prática do abuso de poder de autoridade religiosa, conquanto não disciplinada legalmente, pode ser sancionada quando as circunstâncias do caso concreto permitam o enquadramento da conduta em alguma das formas positivadas de abuso, seja do poder político, econômico ou dos meios de comunicação social[6]. (…)

 VIII) Conclusão do tópico

O intuito do legislador ao estabelecer as restrições acima listadas é impedir que a normalidade eleitoral seja comprometida pelo uso da estrutura eclesiástica, seja por meio da utilização de recursos financeiros ou através do uso de espaços de aglomeração pública para veiculação de propaganda política, como são os templos religiosos. Trata-se de forma de proteger a isonomia dos candidatos concorrentes durante o processo eleitoral.

Infelizmente – e a ANAJURE não nega, ao contrário, condena veementemente –, abusos de poder e práticas ilícitas diversas, que desequilibram a disputa do pleito, acontecem em arraiais religiosos e, sabendo da imoralidade e ilegalidade de tais condutas, devem as igrejas e seus membros darem todo apoio às instituições públicas que perseguem e punem os infratores, a fim de que não haja manipulações e desvirtuamentos da função religiosa.

Entretanto, é oportuno lembrar que a intenção dos dispositivos legais não é afastar o elemento religioso do debate político, pois a vedação de propaganda nos locais de cultos religiosos não se deve à natureza da atividade realizada nestes ambientes, como se a proibição se fundamentasse na atividade espiritual das organizações religiosas, mas sim, porque o local de cultos se equipara, para fins eleitorais, ao bem de uso comum, acessível por qualquer popular.

2 – Declaração de compromisso em prol dos valores democráticos e do respeito ao Estado de Direito

Considerando as dificuldades decorrentes da interação entre o campo político e o religioso e os desafios próprios do pleito eleitoral de 2022, indicamos algumas diretrizes que, ao nosso juízo, devem ser seguidas por organizações religiosas, líderes e membros em geral. Tais diretrizes expressam estima pelos valores democráticos e respeito pelo Estado de Direito, tudo em conformidade com a Constituição Federal, a legislação eleitoral brasileira e os tratados e princípios internacionais:

  1. A legislação eleitoral em vigor não impõe limites desarrazoados à liberdade religiosa e de expressão das pessoas e das organizações, ao que se espera que os competentes para aplicá-la – notadamente, Ministério Público Eleitoral e as coordenações de propaganda eleitoral dos Tribunais Regionais Eleitorais – não firam o núcleo essencial desses direitos humanos fundamentais e possam interpretar corretamente a natureza e manifestação do fenômeno religioso.
  2. O dever de consciência de um sujeito religioso, que preza pelo bem comum, a paz social, a lisura e a probidade nas relações, deve impeli-lo a não praticar o que for contrário às leis estabelecidas e ainda auxiliar os órgãos públicos competentes a investigar e apurar todas as eventuais faltas cometidas, que firam a moralidade, a normalidade e a legitimidade das eleições;
  3. A sociedade em geral e os religiosos em particular devem se manifestar contrários à manipulação de pesquisas eleitorais de intenção de voto, cuja finalidade é enganar, ludibriar e induzir a erro todos aqueles que buscam um voto livre e consciente;
  4. A sociedade em geral e os religiosos em particular devem combater, individual, coletiva ou institucionalmente, a propagação de desinformação, tendo o cuidado de investigar as fontes da informação, antes de compartilhá-la, e zelar pelo dever de falar a verdade, prezar pelas boas relações, evitando a propagação de calúnias e difamações;
  5. O respeito à diversidade, decorrente de um esforço natural pela preservação das liberdades individuais, e o convívio harmônico e plural com outros de convicções e preferências dissonantes é um bom termômetro democrático, razão pela qual devem ser repudiadas todas as manifestações autoritárias, que mitiguem (em qualquer grau) a dignidade humana e desrespeitem a liberdade de consciência e expressão alheia, o que não significa a concordância com todas as opiniões apresentadas.

3 – Conclusão

Pelo exposto, o Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE:

a. Posiciona-se contrariamente a quaisquer práticas ilegítimas, ilícitas e imorais que tenham a finalidade de desequilibrar o pleito eleitoral;

b. Incentiva as organizações religiosas e seus líderes a conhecerem e observarem adequadamente as disposições da legislação eleitoral aplicáveis ao setor religioso no contexto político;

c. Repudia o compartilhamento de conteúdo desinformativo e restrições indevidas à liberdade de expressão, bem como qualquer conduta contrária ao sistema democrático;

d. Reforça, diante disso, a importância da preservação do papel dos órgãos públicos responsáveis pela fiscalização das campanhas eleitorais;

e. Conclama o poder público a fornecer a proteção adequada ao fenômeno religioso, sem ferir o núcleo essencial dos direitos humanos fundamentais a ele relacionados.

Brasília, 06 de setembro de 2022

Edna V. Zilli
Presidente do Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE

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[1] TRE-PR, RE 6228, 2008

[2] Recurso Especial Eleitoral nº 060277359, Acórdão, Relator(a) Min. Edson Fachin, Publicação:  DJE – Diário da justiça eletrônico, Tomo 149, Data 13/08/2021.

[3] Recurso Ordinário nº 265308, Acórdão, Relator(a) Min. Henrique Neves Da Silva, Publicação:  DJE – Diário da justiça eletrônico, Data 05/04/2017, Página 20/21

[4]  Recurso Eleitoral n 060068229, ACÓRDÃO n 060068229 de 28/05/2021, Relator RODRIGO CAHU BELTRÃO, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 119, Data 07/06/2021, Página 19-20.

[5] Para mais informações: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Janeiro/eleicoes-2022-conheca-as-regras-para-arrecadacao-dos-recursos

[6] RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 8285, Acórdão, Relator(a) Min. Edson Fachin, Publicação:  DJE – Diário da justiça eletrônico, Tomo 200, Data 06/10/2020.