Nota Pública sobre a Resolução n° 07/2023, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que estabelece normas para o exercício profissional em relação ao caráter laico da prática de Psicologia

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a Resolução n. 7/2023, do Conselho Federal de Psicologia, que estabelece normas para o exercício profissional em relação ao caráter laico da prática de Psicologia.

I – Síntese fática.

Em 6 de abril de 2023, o Conselho Federal de Psicologia publicou a Resolução n. 7/2023, que estabelece normas para o exercício profissional em relação ao caráter laico da prática psicológica. A Resolução é composta por quatro artigos, os quais relacionam importantes conceitos – como laicidade, direitos fundamentais, Estado Democrático de Direito, discriminação religiosa e fundamentalismo religioso – com a prática profissional da psicologia.

Ao compreender que a delimitação dos conceitos citados necessita de maior análise, a ANAJURE emite a presente Nota Pública.

II – Da proteção à liberdade religiosa.

A liberdade religiosa é direito fundamental amplamente resguardado por diferentes textos normativos. Essa vasta proteção está relacionada à relação íntima entre espiritualidade e dignidade da pessoa humana, considerando o papel exercido pela religião ao conferir norte, significado e identidade aos seus adeptos. Compreendendo isso, o art. 18, da Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948, da ONU, dispõe que:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.

De modo semelhante, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/1966 (PIDCP) estabelece, em seu art. 18, item 1:

Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

Em âmbito regional, o Pacto de San José da Costa Rica/1969 preceitua nos seguintes termos:

Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, traz a seguinte disposição:

Art. 5º. (…) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Cabe pontuar que a liberdade religiosa tem um aspecto interno (forum internum) e um aspecto externo (forum externum). Aquele diz respeito à liberdade que o indivíduo tem de aderir ou mudar de religião. Esse processo de formação de convicções está ligado ao forum internum do indivíduo, ou seja, sua esfera íntima de existência. Igualmente importante o aspecto externo desse direito, que diz respeito à manifestação da religião. De fato, qualquer convicção profundamente assentada levará inevitavelmente a manifestações práticas de várias maneiras, que foram resumidas pela DUDH na forma de “ensino, prática, culto e observância”.

III. Da competência do Conselho Federal de Psicologia.

Em primeiro lugar, deve-se pontuar que, segundo previsão constitucional, cabe à União Federal legislar privativamente sobre as condições para o exercício profissional:

Art. 22. Compete privativamente à União Federal legislar sobre: (…)

XVI – organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;

Assim sendo, em razão da descentralização administrativa, a União delega a função de organizar o exercício profissional aos denominados Conselhos de Fiscalização Profissional, sendo estes pessoas jurídicas de direito público com autonomia administrativa e financeira sujeitas ao controle finalístico do Estado.

No mais, ressalta-se a relevante função assumida por tais Conselhos de Fiscalização das Atividades Profissionais em promover a integridade e disciplina das múltiplas profissões. Em defesa da sociedade, à luz da Constituição Federal, sua atuação preza por impedir o exercício profissional ilegal, estabelecendo mecanismos e requisitos que possam assegurar o perfil ético e técnico dos profissionais de diferentes áreas. Um dos possíveis mecanismos à disposição dos Conselhos é a utilização do poder de polícia administrativa, podendo aplicar penalidades aos seus membros caso as normas da categoria profissional sejam desrespeitas.

Especificamente sobre o Conselho Federal de Psicologia (CFP), menciona-se que este possui sua atuação pautada pela Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, e pelo Decreto nº 79.822, de 17 de julho de 1977. Ambas as normas legais, sintetizam a atribuição do Conselho em elaborar regimentos que disciplinem acerca da devida atuação do profissional da psicologia.

No entanto, esse tipo de ato administrativo não é dotado da prerrogativa de inovar no ordenamento jurídico, destinando-se, apenas, a concretizar a execução da lei, a ser elaborada, debatida e aprovada pelo Legislativo. Trata-se de uma decorrência do princípio da legalidade, explicado nos seguintes termos por Celso Antônio Bandeira de Mello[1]:

O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. (…) Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já se contém abstratamente nas leis. (Grifo nosso).

Essa vedação se aplica aos diferentes níveis da Administração Pública, inclusive no que diz respeito à expedição de Portarias por Ministros de Estado. Mais uma vez, as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello[2] são elucidativas:

Assim, toda a dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de instruções, portarias, resoluções, regimentos ou normas quejandas. Desatendê-los implica inconstitucionalidade.

Dessa forma, tendo em vista as considerações precedentes, é possível examinar alguns pontos da Resolução n. 7/2023 que demandam atenção.

IV – Do teor da Resolução nº 7/2023.

A Resolução nº 7/2023 salienta aspectos importantes da atuação profissional do psicólogo(a). Manifesta-se: a necessidade de atuação segundo os princípios éticos da profissão, pautados no respeito à singularidade e diversidade de pensamentos e crenças (art. 1º, caput); a imperatividade do uso de princípios, conhecimentos e técnicas advindas da ciência psicológica (art. 2º, caput); e a vedação contra a prática de atos que caracterizem discriminação ou violência à crença religiosa (art. 3º, caput). As previsões descritas acima estão consubstanciadas de acordo com os ditames constitucionais da igualdade e dos direitos sociais. Todavia, a Resolução, de igual forma, promove diretrizes normativas problemáticas.

A Resolução nº 7/2023, nos incisos II, V, VI, VII, VIII e IX do art. 3º, aduz:

Art. 3º É vedado à psicóloga e ao psicólogo, nos termos desta Resolução e do Código de Ética Profissional:

(…)

II – induzir a crenças religiosas ou a qualquer tipo de preconceito, no exercício profissional;

(…)

V – utilizar o título de psicóloga ou psicólogo associado a vertentes religiosas;

VI – associar conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica a crenças religiosas;

VII – exercer qualquer ação que promova ou legitime práticas de intolerância e racismo religioso contra indivíduos e comunidades de matriz africana, indígenas e tradicionais;

VIII – exercer qualquer ação que promova fundamentalismos religiosos e resulte em racismo, LGBTI+fobia, sexismo, xenofobia, capacitismo ou quaisquer outras formas de violação de direitos;

IX – utilizar, como forma de publicidade e propaganda, suas crenças religiosas.

As disposições normativas citadas representam um risco ao exercício do direito fundamental à liberdade religiosa.

Primeiro, falham na interpretação do conceito de laicidade (art. 2º, I, da Resolução n.7/2023 do CFP) ao equipará-lo ao termo laicismo. Como é de notório conhecimento, a laicidade não significa oposição ou inimizade em relação à fé. Antes, o modelo laico adotado pelo Brasil representa uma postura de neutralidade estatal benevolente para com as diversas crenças, sendo possível, inclusive, existir a colaboração de interesse público entre os entes federativos e as organizações religiosas (art. 19, I, CRFB). Por outro lado, o laicismo busca confinar quaisquer manifestações religiosas ao espaço privado da vida humana, extirpando-as do debate público[3].

Nota-se, a partir dos conceitos estipulados, que neutralidade e laicidade não estão em perspectivas antagônicas, antes caminham de modo paralelo com o objetivo de resguardar a liberdade dos indivíduos, religiosos ou não. O laicismo, em contrapartida, produz um discurso público secularizado que acaba por pressionar e coagir as pessoas com crenças religiosas no sentido do abandono das suas crenças. Desse modo, a neutralidade religiosa, à luz de uma elaboração laicista, se transforma em neutralização da religião[4].

Em segundo lugar, ao promover um comportamento contrário à religiosidade, o texto ressaltado da Resolução n. 7/2023 fere o direito fundamental à liberdade religiosa, sendo inconstitucional.

Como já demonstrado, o direito à liberdade religiosa está consagrado em vasta miríade de textos normativos (art. 18, da Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948, da ONU; art. 18, item 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/1966; e art. 12 do Pacto de San José da Costa Rica/1969; e no art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988).

Tal garantia abrange a liberdade religiosa em sua dupla dimensão, interna e externa. Diz-se interna ao se referir acerca da possibilidade do indivíduo aderir ou mudar de religião, vez que tal processo está ligado à esfera íntima da existência. De outro modo, caracteriza-se como externa ao ser expressa em público a partir das múltiplas formas de manifestação possíveis do fenômeno religioso. Sumariza a ideia acima o posicionamento de Gomes Canotilho[5]:

“A liberdade de religião é a liberdade de adotar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião, de fazer proselitismo num ou noutro sentido, de não ser prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou antirreligiosa”.

A partir do momento em que veda ao psicólogo associar sua persona pública profissional e pessoal a vertentes religiosas (art. 3º, incisos V e IX), a Resolução indevidamente reprime o direito fundamental de seus membros à exercício e vivência pública de sua fé religiosa.

Problema semelhante pode ser encontrado no art. 3º, inciso VI da Resolução. Ao proibir aos profissionais a associação de “conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica a crenças religiosas”, a disposição, partindo de concepções obsoletas de neutralidade científica, termina por vedar estudos e práticas que busquem refletir as intersecções entre o fenômeno religioso e/ou a teologia com a ciência psicológica.[6]Semelhante vedação coloca em risco a própria liberdade acadêmica e de cátedra no campo da psicologia, obstaculizando explorações sob temor de sanções administrativas.

Faz-se importante observar, ainda, que a resolução em análise se utiliza de conceitos abertos e juridicamente indefinidos. O conceito de “fundamentalismo religioso” não é definido pela resolução[7], tampouco existindo tratamento adequado no ordenamento pátrio. A mesma indefinição é observada no conceito de “intolerância religiosa”[8]. Tal indefinição e a consequente pluralidade de definições possíveis faz com que tal disposição seja inadequada, na medida em que concedem alto grau de discricionariedade à decisão administrativa do CFP. Por sua vez, tal abertura e discricionariedade pode ser tragicamente instrumentalizada para o tolhimento da garantia fundamental da liberdade religiosa dos profissionais da psicologia.

Nesse sentido, indaga-se: deve o profissional liberal abdicar de seus direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente previstos, em prol de uma simples diretriz normativa de seu Conselho de Fiscalização? A reposta, obtida em um Estado Constitucional, é negativa. O próprio Supremo Tribunal Federal reconhece na ADI 3481[9] que os atos infralegais do CFP não estão acima dos direitos presentes no texto da Constituição Federal:

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. RESTRIÇÃO AO COMÉRCIO E USO DE TESTES PSICOLÓGICOS. CABIMENTO. LIMITAÇÃO DESPROPORCIONAL À LIBERDADE DE ACESSO À INFORMAÇÃO (ART. 5º, XIV, CF) E À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, CRIAÇÃO, EXPRESSÃO E INFORMAÇÃO (ART. 220, CAPUT, CF).

      1. A Jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL admite o uso da ação direta de inconstitucionalidade contra atos normativos infralegais que inovem originariamente no ordenamento, em confronto direto com o texto constitucional.
      2. A competência dos Conselhos Profissionais para regulamentar o exercício das respectivas profissões não permite a limitação ao comércio e uso de livros, revistas, apostilas ou qualquer meio editorial pelo qual se veiculem conteúdos relacionados ao exercício profissional (…).

Além de referidas considerações acerca da laicidade no Estado Brasileiro, observa-se, ainda, clara ofensa à isonomia no art. 3º, VIII, da Resolução. A citada disposição veda a prática de “qualquer ação que promova ou legitime práticas de intolerância e racismo religioso” especificamente contra “indivíduos e comunidades de matriz africana, indígenas e tradicionais”.

Ainda que referida normativa acerte em vedar a prática de racismo e discriminação religiosa[10], a redação estende sua proteção somente a determinados grupos sociais e religiosos em detrimento dos demais. Veda-se a promoção ou legitimação do racismo religioso contra comunidades indígenas e de matriz africana, sem que a mesma proteção se estenda sobre comunidades católicas, evangélicas, judaicas e islâmicas.

Conquanto vista superficialmente tal especificação possa aparentar ser justificada pela especial vulnerabilidade social dos grupos relacionados, inexiste qualquer motivo contrário à expansão de tal proteção contra discriminação a todos os grupos religiosos que compõem o tecido social brasileiro. Deste modo, torna-se evidente a ofensa da Resolução à isonomia, insculpida no caput do art. 5º da Constituição da República.

Assim, à luz da argumentação exposta, percebe-se que as normas provenientes dos Conselhos Profissionais, incluindo o CFP, necessitam estar em consonância com a totalidade do ordenamento jurídico pátrio, a começar pelos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.

 

IV – CONCLUSÃO

Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE se posiciona nos seguintes termos:

  1. Repudia qualquer tentativa de repressão aos direitos fundamentais, incluindo a liberdade religiosa, dos psicólogos membros do Conselho Federal de Psicologia;
  2. Manifesta preocupação em relação ao texto da Resolução n. 7/2023 do Conselho Federal de Psicologia ao entender que o mesmo transmite diretrizes normativas contrárias à garantia da liberdade religiosa da classe de profissionais liberais vinculada.
  3. Sugere a alteração do texto da Resolução n. 7/2023 com a finalidade de adequar a diretriz normativa ao contexto principiológico de proteção aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.

Brasília-DF, 28 de abril de 2023

Dra. Edna V. Zilli

Presidente da ANAJURE

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[1] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed.. Malheiros Editores: São Paulo, 2013. P. 108.

[2]  MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed.. Malheiros Editores: São Paulo, 2013. P. 374.

[3]SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 251.

[4]MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o (neo) ateísmo. Livraria do Advogado Editora, 2021. p. 24.

[5]GOMES CANOTILHO, JJ. Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. 1. 1ed. Brasileira. São Paulo. 2007. p. 609.

[6]A título exemplificativo, aponte-se que a American Psychological Association reconhece disciplinas a nível de graduação e pós-graduação que versem sobre as interseções entre psicologia e a fé cristã.

[7] Recorde-se que, em sua origem, o termo “fundamentalista” se referiria apenas a determinada corrente teológica protestante norte-americana. Hoje, o termo assumiu diversos significados, sendo muitas vezes equacionado a uma mera religiosidade conservadora ou mesmo ao radicalismo religioso perpetrado por violência contra o próximo. Nesse sentido, é salutar o artigo enciclopédico, que ressalta a pluralidade semântica do rótulo: https://www.britannica.com/topic/fundamentalism .

[8] Cumpre recordar as recentes publicações do governo baiano nas mídias sociais, que equacionavam o exclusivismo monoteísta e o proselitismo religioso essenciais às religiões de vertente cristã com o conceito de “intolerância religiosa”. Recorde-se a manifestação da ANAJURE frente ao caso: https://anajure.org.br/anajure-solicita-remocao-de-publicacao-preconceituosa-em-perfil-institucional-do-governo-baiano-sobre-dia-nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa/

[9]STF, Tribunal Pleno, ADI 3481, Relator: Min. Alexandre de Moraes, julgado em 08/03/2021, publicado em 06/04/2021)

[10]Não obstante os questionamentos acima elaborados acerca da indefinição de determinados conceitos, como “intolerância religiosa”.