Nota Pública sobre liberdade de expressão e acusações de homofobia no caso do Jogador Maurício Souza

A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota sobre alegações recentes de que o jogador de vôlei Maurício Souza teria cometido crime de homofobia em postagem divulgada em rede social.

Em 12 de outubro, o jogador compartilhou no Instagram uma imagem que continha a seguinte informação: “Superman atual, filho de Clark Kent, assume ser bissexual”. Na legenda da foto, Souza escreveu: “Ah, é só um desenho, não é nada demais… Vai nessa que vai ver onde vamos parar…”. Em reação, surgiu nas redes sociais, nos últimos dias, a argumentação de que a postura do jogador se amoldaria ao crime de homofobia.

Se, por um lado, há quem alegue que o jogador incorreu no crime de homofobia, com base inclusive na decisão do Supremo Tribunal Federal na ADO n. 26, há quem argumente que Souza apenas exerceu a sua liberdade de expressão. Diante da divergência, analisaremos a seguir a proteção conferida ao referido direito, e as balizas firmadas pela Corte brasileira na Ação referida.

Sobre a liberdade de expressão, vale citar a ampla proteção recebida por esse direito em âmbito internacional e nacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe em seu art. 19 que: “todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”. De modo semelhante, dispõem o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 19) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 13). A Constituição Federal de 1988 fixa que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, inciso IV).

A exemplo dos outros direitos fundamentais, no entanto, a liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser limitada pela lei quando necessário ao respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas, à proteção da segurança nacional, da ordem, da saúde e da moral pública (art. 19, item 3, do PIDCP e art. 13, item 2, CADH). Nesse sentido, durante os debates relativos à criminalização da homofobia, ocorridos na ADO 26, a ANAJURE sustentou a proteção à liberdade de expressão e à liberdade religiosa, ressalvando, no entanto, que o exercício desses direitos não deve resultar em agressões às pessoas LGBT[1]:

Põe-se em relevo, nessa seara, que não são englobadas no âmbito da liberdade religiosa, nem se pretende que sejam, as condutas que imponham a qualquer indivíduo, seja homem ou mulher, heterossexual, homossexual ou transexual, situação humilhante, vexatória ou que busque sua exploração, escravização ou eliminação, visto que não se compatibilizam com o princípio norteador do sistema constitucional brasileiro: a dignidade da pessoa humana[2].

Compreende-se que há limites para o exercício da liberdade de expressão. No entanto, não é razoável extrair que a mera manifestação de discordâncias importe numa extrapolação do exercício desse direito. Inclusive, nesse sentido, o Supremo fixou, na ADO 26, que há espaço no regime democrático para o dissenso, permitindo-se manifestações que gerem divergências ou, até mesmo, repúdio por parte da sociedade:

O verdadeiro sentido da proteção constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas) que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade. (…) É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento – e, particularmente o pensamento religioso – não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias, especialmente as de natureza confessional, possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo e à tolerância.

A título de exemplo, cita-se, ainda, o caso Matal v. Tam. Nele, a Suprema Corte americana analisou as objeções apresentadas pelo Patent and Trademark Office para não registrar uma banda de rock que adotara um título que teria teor depreciativo para asiático-americanos, concluindo pela necessidade de proteção do discurso, ainda que ofensivo, por força do disposto pela Primeira Emenda. Na ocasião, o Justice Alito afirmou que o “discurso que desonra com base na raça, etnia, gênero, religião, idade, deficiência ou que de qualquer outro modo são odiosos; mas o que mais nos orgulha em nossa jurisprudência de liberdade de expressão é que nós protegemos a liberdade de se expressar ‘o pensamento que odiamos.’  United States  v.  Schwimmer,  279  U. S.  644,  655  (1929)  (Holmes,  J., dissenting)[3]. No mesmo caso, o Justice Kennedy  afirmou: “Uma lei que pode ser dirigida contra o discurso considerado ofensivo para alguma parte do público pode ser voltada contra as opiniões minoritárias e divergentes em detrimento de todos. A Primeira Emenda não confia esse poder à benevolência do governo. Em vez disso, nossa confiança deve estar nas salvaguardas substanciais da discussão livre e aberta em uma sociedade democrática[4]. Nota-se, portanto, uma escolha da Corte pela proteção da liberdade expressão, mesmo em casos que possam gerar repúdio de parcela da sociedade, numa opção fundada não apenas na salvaguarda do referido direito, mas na preservação de um ambiente plural de discussão.

A partir dos parâmetros expostos até aqui, entende-se, quanto ao caso em análise, que não há base jurídica para se configurar o crime de homofobia. No texto do jogador, não se verifica nenhum estímulo à prática de agressões ou à sujeição de pessoas LGBTs a situações humilhantes, havendo, apenas, um posicionamento divergente quanto à promoção de um material literário de uma empresa. Manifestações assim estão plenamente resguardadas pelo direito à liberdade de expressão, não somente diante do que consta em diplomas de direitos humanos, mas com base na própria decisão proferida pelo Supremo na ADO n. 26.

Brasília-DF, 28 de outubro de 2021.

Assessoria Jurídica da ANAJURE

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[1] https://anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-a-tese-firmada-no-julgamento-da-ado-26-relativa-a-criminalizacao-da-homotransfobia/

[2] https://anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-a-tese-firmada-no-julgamento-da-ado-26-relativa-a-criminalizacao-da-homotransfobia/

[3] https://supreme.justia.com/cases/federal/us/582/15-1293/case.pdf

[4] Ibid.