Nota pública sobre o PL 2/2019, que restringe o uso do título “Bíblia” em publicações impressas e eletrônicas

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A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre o PL 2/2019, que restringe o uso do título “Bíblia” em publicações impressas e eletrônicas.

I – Síntese dos fatos

O Projeto de Lei n. 2/2019[1] foi apresentado em fevereiro de 2019 pelo Deputado Federal Pr. Sargento Isidório (AVANTE/BA) e busca proibir que o nome “Bíblia” ou “Bíblia Sagrada” seja utilizado em publicações impressas ou eletrônicas com sentido diferente do já consagrado pela religião cristã.

Além disso, estabelece que o uso indevido do termo será passível de punição no âmbito criminal, com base no disposto no art. 171 do Código Penal, que prevê o delito de estelionato, e no art. 208 do mesmo diploma, que pune o escárnio por razões religiosas, a perturbação de cerimônia religiosa e o vilipêndio público de ato ou objeto de culto.

Na justificativa do projeto, o autor manifesta a preocupação de que uma pessoa ou um grupo utilize o vocábulo em obras cujo conteúdo não seja compatível com a pregação tradicionalmente adotada pelos cristãos. Na concepção do deputado, um ato como esse constituiria um vilipêndio a um objeto sagrado.

Diante da conexão do assunto com aspectos atinentes à liberdade religiosa, a ANAJURE aproveita o ensejo para se manifestar sobre a temática.

II – Considerações jurídicas

Inicialmente, vale transcrever a literalidade da proibição inscrita no PL 2/2019:

Art. 1º – Fica terminantemente proibido os termos “Bíblia” e/ou “Bíblia Sagrada” em qualquer publicação impressa ou eletrônica de modo a dar sentido diferente dos textos consagrados há milênios nos livros, capítulos e versículos utilizados pelas diversas religiões Cristãs já existentes, seja católica, evangélica ou outras mais que se orientam por este Livro mundialmente lido e consagrado como Bíblia.

Art. 2º – O uso indevido dos termos “Bíblia” e/ou “Bíblia Sagrada” será passível de punição conforme tipificado no crime de estelionato (Artigo nº 171 – obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento) e também o Artigo nº 208 (escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso) ambos previsto no Código Penal.

A preocupação manifestada pelo Deputado Isidório e que fundamentou a propositura do dispositivo acima transcrito é a de que o termo “Bíblia” seja utilizado em obras cujo teor seja incompatível com os preceitos cristãos. A proibição expressa no texto proposto pelo deputado, todavia, dá margem para restrições ainda mais amplas, conforme será exposto a seguir.

Há determinadas obras no mercado que recebem o termo “Bíblia” em seu título numa referência à completude de seu conteúdo. Trata-se de algo que pode ser visto, também, como decorrente da etimologia da palavra Bíblia, originária do termo “biblos” (βιβλος), cujo significado é “um livro escrito, um registro, um rolo”[2]. Dessa forma, alguém pode elaborar um livro sobre fotografia ou sobre informática e chamá-lo de “Bíblia da fotografia” ou “Bíblia da informática”, com o objetivo de indicar que aquela obra possui as bases mais importantes sobre um determinado assunto ou de que se trata de um conjunto de registros acerca de uma temática.

Nota-se, portanto, que há um sentido diferente do consagrado ao longo dos séculos para o uso do vocábulo, visto que, quando se fala em “Bíblia”, a associação mais comum é feita com o livro sagrado pertencente aos cristãos. Ainda assim, retornando ao exemplo anterior, quando se produz uma obra intitulada “Bíblia da fotografia” ou “Bíblia da informática”, mesmo que haja uma utilização distinta da usual, não há uma ofensa ao sentimento religioso dos cristãos que enseje a instauração de uma investigação criminal. A redação ampla utilizada no PL, contudo, dá margem para que situações como essa sejam tidas como um uso fora de contexto e, consequentemente, punível no âmbito penal.

A criminalização de casos como esse acaba colidindo com princípios fundamentais do Direito Penal, como o relativo à intervenção mínima, o qual, nas palavras de Guilherme Nucci, “significa que o direito penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo, retirando-lhe autonomia e liberdade”[3]. Uma das razões para isso é que “o direito penal é considerado ultima ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator”[4].

Situação diversa da que foi narrada acima é aquela em que o termo “Bíblia” é utilizado no título de uma obra dotada de conteúdo incompatível com os preceitos cristãos. Em circunstâncias como essa é necessário aferir se a utilização é capaz de gerar ofensa ao sentimento religioso ou não, analisando-se, dessa forma, a possibilidade de que a conduta se amolde ao disposto no art. 208 do Código Penal, que assim prevê:

Art. 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

O delito de vilipêndio, nas palavras de Rogério Greco, “deve ser entendido no sentido de menoscabar, desprezar, enfim, tratar como vil, publicamente, ato ou objeto de culto religioso”[5]. Em casos de utilização do termo “Bíblia” para intitular conteúdo desvinculado da fé cristã, é possível que o uso feito configure uma ofensa ao sentimento religioso dos adeptos dessa confissão. É desproporcional, contudo, entender previamente que todo e qualquer uso do termo será uma ofensa apta a exigir a pena de detenção. Nesse sentido, é prudente que haja uma avaliação das circunstâncias do caso para que se obtenha uma decisão equilibrada.

Ademais, entendemos que a aprovação de uma norma que estabeleça determinada conduta como crime de estelionato ou contrário ao sentimento religioso é desnecessária, visto que ambas condutas já se encontram tipificadas, restando ao julgador aferir a ocorrência do delito ou não.

III – Conclusão

Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE se posiciona pela rejeição do PL n. 2/2019, compreendendo que a redação empregada é excessivamente ampla e que a verificação do enquadramento da conduta em debate como estelionato ou crime contra o sentimento religioso é atividade que compete ao Judiciário.

 

Brasília-DF, 14 de março de 2022.

Assessoria Jurídica da ANAJURE

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

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[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01pgcz807au7nblvb4c9so3xwu52599752.node0?codteor=1706762&filename=PL+2/2019

[2] βιβλος. Dicionário Bíblico Strong. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

[4] Ibid.

[5] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 7 ed. Niteroi: Impetus, 2013.