O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE –, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a votação do PL n. 478/2007.
I – Síntese fática
O Projeto de Lei n. 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, tramita na Câmara dos Deputados desde 2007, quando foi proposto, à época, pelos deputados Luiz Bassuma (PT/BA) e Miguel Martini (PHS/MG).
Em seu texto original[1], a proposta elencava uma série de direitos ao nascituro, atribuindo-lhe personalidade jurídica ao haver nascimento com vida e reconhecendo a sua natureza humana desde a concepção. Além disso, criminalizava algumas condutas, como a apologia ao aborto e a indução de mulher grávida à realização da prática. Também vedava ao Estado e aos particulares o cometimento de qualquer dano ao nascituro como decorrência de ato delituoso efetuado por um dos genitores.
Atualmente, o projeto se encontra na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e foi incluído em pauta para votação nesta quarta[2]. Na referida Comissão, o PL recebeu um parecer de autoria do Deputado Emanuel Pinheiro Neto. Em sua análise[3], o parlamentar se posicionou favoravelmente à aprovação da proposta, afirmando:
É muito claro que, desde a concepção, nasce para a Constituição Federal um titular de direitos fundamentais, sendo a vida o primeiro marco e o pressuposto para o exercício de qualquer outro direito. Por sua vez, se as convenções internacionais determinam que, é obrigação do Estado a proteção desde a concepção, soa completamente ilógico permitir o aborto do feto, já que não terá o Estado como proteger quem está morto.
Ao final do relatório, o deputado apresentou um substitutivo contemplando algumas mudanças no texto como decorrência da adoção de dispositivos presentes em PLs apensados à proposta. Pinheiro Neto ainda pontuou que dispositivos relativos à matéria penal não constaram no texto do substitutivo, pois, no seu entendimento, tais pontos não devem fazer parte do Estatuto do Nascituro, demandando legislação específica que altere o Código Penal.
Diante disso, o substitutivo elaborado contém disposições que conceituam o nascituro e que lhe atribuem direitos, especialmente o reconhecimento de sua natureza humana e personalidade jurídica desde a concepção. O texto também faz referência à proteção do nascituro concebido em ato de violência sexual, concedendo-lhes os mesmos direitos dos nascituros em geral.
Feito tal relato, pontuam-se algumas considerações jurídicas a seguir.
II – Proteção do ordenamento jurídico ao nascituro
A Constituição Federal de 1988 anuncia, no caput do art. 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida (…)”. A disposição está em consonância com um dos fundamentos da República: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB).
Na doutrina jurídica, há o reconhecimento do princípio da universalidade, acolhido no direito constitucional brasileiro[4], do qual se decorre a concepção de que todas as pessoas, pelo fato de serem pessoas, são titulares de direitos e deveres fundamentais, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia. A atribuição de direitos a todos, sem distinção, acaba compreendendo, também, o embrião humano e nascituro. Sobre isso, algumas considerações de Ingo Sarlet:
No caso de embriões (e fetos) em fase gestacional, com vida uterina, nítida é a titularidade de direitos fundamentais, especialmente no que concerne à proteção da conservação de suas vidas, e onde já se pode, inclusive, reconhecer como imanentes os direitos da personalidade[5].
O fato de o nascituro não deter, ainda, o desenvolvimento completo não lhe retira a condição de titular de direitos fundamentais. Afinal, a dignidade de uma pessoa não muda conforme as mudanças biológicas. Assim, quando se considera que a ciência genética e biológica já assentou que desde o zigoto formado na fecundação se erige um novo ser humano, com todas as características genéticas já desenvolvidas e individualizadas, autônomas ao corpo da gestante[6], há que se entender que o nascituro também é sujeito de direitos, pois também é um ser humano.
O Pacto de São José da Costa Rica (ou Convenção Americana de Direitos Humanos) não possui outra dicção, senão que:
Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (art. 4º).
O embrião, portanto, atende aos critérios determinados pela biologia: trata-se de um organismo vivo e indubitavelmente da espécie humana. No entanto, atende, ainda, a um critério antropológico: é um indivíduo cuja capacidade de autodesenvolvimento para a vida racional e consciente futura é inerente à sua própria condição corporal embrionária.
Todo o ordenamento infraconstitucional brasileiro está assente na ideia de que o nascituro é titular ou destinatário de direitos fundamentais. Basta que se pense, por exemplo, que, embora o Código Civil condicione a personalidade jurídica ao nascimento com vida, ele é construído sobre um sistema protetivo ao nascituro, tutelando os seus direitos (art. 2°, do CC/02), tornando-o apto a receber doações (art. 543, do CC/.02) e admitindo sua instituição como herdeiro testamentário (art. 1.798, do CC/02).
Da mesma forma, o Código de Processo Civil impõe entraves ao exercício de certos direitos quando a situação envolve a existência de um nascituro (exemplos, arts. 650 e 733); o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que a gestante seja tratada de modo especial, visando o pleno desenvolvimento do feto (art. 7º), assim como a lei dos alimentos gravídicos busca proteger a gestante e a criança gestada (lei 11.804/08), a fim de que esta última possa se desenvolver plenamente. Inclusive a própria inviolabilidade da vida do nascituro é reconhecida, em virtude da existência da proibição ao aborto.
Por esse quadro, ainda que não possua personalidade jurídica – no entendimento legal adotado da teoria natalista – o nascituro detém dignidade humana e é titular de direitos fundamentais, pois do contrário não haveria as normas acima mencionadas e tantas outras no mesmo sentido.
Desse modo, nota-se que a proposta contida no Estatuto do Nascituro segue a linha não somente da legislação brasileira, mas também da proteção contida em normas do direito internacional, ao reforçar a proteção aos direitos de personalidade do nascituro.
Especificamente quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, importa destacar a ressalva feita pelo relator da proposta na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. Em suas considerações, o Deputado Emanuel Pinheiro Neto salientou que o Estatuto do Nascituro não se propõe a modificar a legislação penal. Dessa forma, o projeto não altera o panorama existente no que diz respeito às excludentes de ilicitude relativas ao aborto.
Nos termos do Código Penal, não se pune o aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante nem quando a gravidez resulta de estupro e há consentimento da gestante ou de seu representante legal (art. 128, CP). Também não é punível a hipótese de aborto de feto anencéfalo, conforme entendimento do STF no julgamento da ADPF 54. Desse modo, considerando que o PL 478/2007 não promove mudanças na norma penal, tais casos de excludente de ilicitude continuam vigentes.
Pelo exposto, o projeto acerta ao trazer dispositivos que reforçam a garantia constitucional dos direitos de personalidade do nascituro, com especial destaque à proteção ao direito fundamental à vida.
III – Conclusão
Assim, pelo exposto, a ANAJURE (1) manifesta o seu apoio ao Projeto de Lei n. 478/2007, recomendando a sua aprovação pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher; e (2) comunica o encaminhamento da presente Nota aos membros da referida Comissão.
Brasília-DF, 14 de dezembro de 2022
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE
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[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=443584&filename=PL%20478/2007
[2] https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2022/12/o-que-e-o-estatuto-do-nascituro-e-como-o-projeto-pode-anular-direito-ao-aborto-legal-no-brasil-clblabvp30086017vcmezfhcg.html
[3] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2218972&filename=Tramitacao-PL%20478/2007
[4] SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 209.
[5] Ibid.
[6] CRUZ-COKE, Ricardo. Fundamentos genéticos del comienzo de la vida humana. Rev. chi. pediatr., Santiago, Abril 1980, vol. 51, n. 2, p. 121-124. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/pdf/rcp/v51n2/art06.pdf. Acesso em 19 jun 2018.