NOTA TÉCNICA SOBRE O VOTO DA MINISTRA ROSA WEBER NO ÂMBITO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADPF 442

RESUMO:  A presente nota técnica examina o voto a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, conforme proferido pela ministra Rosa Weber, Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442). Os meios utilizados para referida análise foram a leitura minuciosa do voto proferido pela Relatora, realização de estudos comparativos da jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal, além de investigação da legislação brasileira e dos tratados internacionais pertinentes ao tema, especialmente no tocante àqueles referenciados na argumentação da Ilustre Ministra. A partir dessas ferramentas de pesquisa, buscou-se delimitar possíveis condicionamentos ideológicos implicados no voto da ministra e, em seguida, tecer comentários e indicar possíveis argumentos alternativos aos propostos pela Relatora.Tendo em vista a constante postura ativista do Supremo Tribunal Federal nos julgamentos de seus processos, comumente denominados pela doutrina como “processos estruturantes”, avaliou-se se o voto proferido pela Ministra poderia ser considerado um caso de ativismo judicial. A presente resenha crítica não tem o objetivo de exaurir as possibilidades, muito menos encerrar o debate sobre tema de tamanha relevância e elevado grau de complexidade, antes buscando revelar alguns posicionamentos passíveis de serem extraídos do voto em destaque.

PALAVRAS CHAVE: Resenha Crítica; Descriminalização do Aborto; Supremo Tribunal Federal; ADPF 442.

1 INTRODUÇÃO

A ministra Rosa Weber, Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), votou em 22/09/2023 pela procedência, em parte, do pedido realizado pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), a fim de descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação.

Com relação ao partido que propôs a ADPF 442, cabe destacar que ele fez sua petição no ano de 2017, e, atualmente, em sua 57ª legislatura (2023 – 2027), elegeu 12 deputados federais dentre as 513 cadeiras da Câmara Federal. Ou seja, uma representação muito pequena para um tema de tão grande complexidade.

A referida ação traz como preceitos violados:

os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento familiar, todos da Constituição Federal (art. 1º, incisos I e II; art. 3º, inciso IV; art. 5º, caput e incisos I e III; art. 6º, caput; art. 196; art. 226, § 7º).

o que leva ao questionamento da validade constitucional da recepção integral dos arts. 124 e 126 do Código Penal.

A partir desse contexto, portanto,  o presente trabalho pretende analisar os fundamentos jurídicos do voto proferido pela ministra, a fim de contribuir para o debate sobre a constitucionalidade da descriminalização do aborto, considerando a relevância desse tema.

Sobre esse objetivo e sua relevância de análise, pontua-se que diversos temas importantes à sociedade são submetidos à análise do Poder Judiciário e, em especial, da Suprema Corte, os quais pacificam entendimentos discutíveis por meio de suas decisões. No entanto, por vezes, o sistema jurídico, sua linguagem, complexidade e funcionamento não são compreendidos pela sociedade, o que dificulta a participação cidadã na vida pública, sobretudo como detentores ou formadores de opinião. Tal realidade justifica e reforça a necessidade urgente de se obter e expandir esclarecimentos acerca dos motivos que conduzirão à decisão colegiada (isto é, pelo Supremo Tribunal Federal), considerando, ainda, se tratar de tema de suma importância ao povo brasileiro.

Assim, para atender nosso objetivo, os meios utilizados foram a leitura minuciosa do voto proferido pela Relatora, realização de estudos comparativos da jurisprudência do Egrégio Supremo Tribunal Federal e investigação da legislação brasileira e dos tratados internacionais pertinentes ao tema, especialmente no tocante àqueles referenciados na argumentação da Ilustre Ministra.

A partir dessas ferramentas de pesquisa, buscou-se identificar os pressupostos jurídicos adotados pela Ministra Rosa Weber na exposição da fundamentação de seu voto e, em seguida, tecer comentários e indicar possíveis argumentos alternativos aos propostos pela Relatora.

Além disso, tendo em vista o que é frequentemente considerado uma postura ativista do Supremo Tribunal Federal nos julgamentos de seus processos, comumente denominados pela doutrina como “processos estruturais”, ou seja, aqueles que buscam reestruturar o estado de conformidade do ordenamento jurídico pátrio (Jobim. 2021, p. 390), analisou-se se o voto proferido seria mais um caso deste mesmo ativismo.

Dessa forma, o objetivo da presente resenha crítica não pretende ser exaustivo, muito menos encerrar o debate sobre tema de tamanha relevância e elevado grau de complexidade, mas sim revelar alguns posicionamentos passíveis de serem extraídos do voto em destaque.

2 ASPECTOS JURÍDICOS 

2.1 Da semelhança a Roe v. Wade (1973) da Suprema Corte Americana

A Ministra Rosa Weber iniciou destacando os fundamentos que embasaram seu voto e levaram ao parcial provimento da ADPF 442. Observa-se, de plano, uma forte influência da jurisprudência estadunidense sobre a temática, especialmente a histórica decisão Roe v. Wade (1973), segundo a qual as leis estaduais que proibiam o aborto eram inconstitucionais, por violarem o direito constitucional à privacidade. Em 2022, porém, a decisão foi revertida, ante o reconhecimento de que tal inovação jurídica não encontrava, de fato, guarida na Constituição americana, nem na tradição e história daquela nação.

Weber aproxima-se de Roe v. Wade na medida em que impugna a personalidade jurídica e direito à vida dos fetos, abrindo o caminho para posicionar-se enfaticamente a favor do abortamento voluntário.

Ab initio, a Relatora declarou que sua deliberação foi guiada “a partir de quatro eixos de fundamentos, quais sejam, o da moralidade pública do Estado, o da saúde pública, o normativo jurídico e o da ciência médica” (Weber, 2023. p. 1).

Além disso, a Ministra reitera diversas vezes que o princípio-guia de sua posição jurídico-moral no debate seria pautada a partir do princípio da proporcionalidade. Este princípio jurídico, de origem germânica, tenta adequar a necessidade e a adequação ante o conflito de normas, jurisprudências, e, como no presente caso, direitos fundamentais.[1]

A partir desse princípio, a Ministra refutou as alegações de uma suposta usurpação de legitimidade processual do STF, frente a competência do Legislativo. Arguiu a Ministra que “o pressuposto do povo como unidade ou corpo homogêneo é equivocado e não fornece materiais necessários para a estruturação adequada e responsiva das democracias contemporâneas” (Weber, 2023, p. 10).

A afirmação aparenta banalizar a função representativa do Poder Legislativo, especialmente considerando que a criminalização do aborto se deu por esse viés, ou seja, por meio da participação popular. Assim, ao rejeitar a competência do Congresso para decidir sobre qualquer eventual descriminalização, com uma mera construção argumentativa, o entendimento da Ministra esvazia a densidade do princípio da participação cidadã, espelhada na função do Poder Legislativo.

 Além disso, se a Constituição é o documento democrático por excelência, deve ser considerado aquilo que o Constituinte optou por não incluir no documento. No caso, o Constituinte decidiu manter essa discussão nas mãos do Congresso, e, conforme declara José Afonso da Silva (2005. p. 198), o direito à vida digna não foi incluído pela Constituinte, e sim o direito à vida enquanto tal .

Ainda em seu voto, a Relatora afastou a tese do direito à vida desde a concepção, tendo em vista se compatibilizar com o quadro fático-brasileiro, afirmando: “Equivocado supor, portanto, a nota da superioridade absoluta e intangível do direito à vida no sistema em face de outros direitos” (Weber, 2023. p. 1).

Tal afirmação, no entanto, está em descompasso com os textos elaborados e sugeridos no âmbito da Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 (Pozza, 1987), que confirmam a existência de diversas emendas requerendo a menção expressa de que a vida inicia desde a concepção, às quais não foram materialmente rejeitadas, mas sim julgadas prejudicadas por se entender o fato de que a vida se inicia na concepção era uma obviedade e, portanto, a proteção desse direito nos moldes em que feito pelo texto constitucional seria suficiente para tutelar a dignidade da vida intrauterina.

A partir desse argumento da ministra, começa a apresentação de um conflito entre direitos fundamentais, sob a ótica de que não basta se ter o direito à vida, mas sim o direito à uma vida digna nas suas respectivas dimensões, trazendo a desigualdade estrutural social para o centro do debate, ao destacar as conquistas alcançadas com muito esforço pelas mulheres ao longo da história, inclusive nos julgados do Supremo Tribunal Federal.

Desta forma, sob o princípio da dignidade da mulher e da proporcionalidade supracitados, defende-se a não intervenção de terceiros na autodeterminação da mulher enquanto gestante, negando, inclusive, o conflito entre valores, direitos constitucionais:

Assim, para a análise do problema constitucional em deliberação, não há falar em antagonismo entre valores constitucionais, mas em relação necessária e consequente, em que a mulher, titular de direitos fundamentais, com oponibilidade de tutela em face do Estado nas decisões que conformam sua dignidade e sua autodeterminação e como ser e estar no mundo, deve usufruir de proteção adequada no campo da saúde reprodutiva como medida de tutela do nascituro (Weber, 2023. p. 42).

Assim, para Weber, não se trata da resolução de um conflito entre os direitos fundamentais à vida e à liberdade, por meio da técnica alemã da ponderação, pois o feto não teria qualquer direito fundamental, possuindo exclusivamente caráter axiológico como parte dos direitos reprodutivos da mulher, enquanto esta queira prosseguir com a gestação.

O entendimento da ministra representa um giro diametralmente oposto em relação à fundamentação da ADPF 54, na qual se utilizava a ponderação e se sustentava que os fetos anencéfalos não tinham direito à vida pela impossibilidade fática dessa vida no contexto extrauterino, bem assim pela ausência de desenvolvimento pleno do sistema nervoso.

Ademais, o argumento se torna contraditório, pois se o feto não tivesse direito, então não haveria conflito de normas constitucionais. Se não houvesse conflito, não haveria ponderação.

Assim, demonstra-se a influência da decisão Roe v. Wade (1973) ao longo da fundamentação utilizada pela Ministra Rosa Weber, declarando a inconstitucionalidade e a não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro.

2.2 Da gestação como injusta discriminação jurídico-biológica

No decurso de 103 páginas, Weber construiu um raciocínio lógico conducente a seu parecer final. Em termos gerais, sua ratio decidendi (1) impugnou qualquer direito fundamental à vida do feto e sua igualdade jurídica com pessoas nascidas enquanto titular de direitos fundamentais, refutando assim sua personalidade jurídica; (2) re-imaginou extensivamente o direito à vida e saúde da gestante, enquanto única pessoa titular de direitos fundamentais na relação gestante-gestado; (3) buscou reafirmar e ampliar o conteúdo normativo da autonomia e direito à autodeterminação e não-discriminação sexual, reprodutiva, social, da mulher.

Elaborados em conjunto, (2) e (3) se fundamentam sobre a premissa inicial de que, pelo direito à vida não ser absoluto, o nascituro não é titular de direitos fundamentais. Legitima-se assim uma leitura ampliativa, quase absoluta na prática, dos direitos fundamentais da mulher: já que o nascituro não é titular de direitos fundamentais e goza somente de uma proteção estatal secundária e subsidiária enquanto vida em potencial, pode-se ampliar os direitos da gestante – inclusive ou especialmente em prejuízo do nascituro – sem óbice algum.

Implica-se um conceito de gestação nos tópicos enquanto castigo e privação inesperada e súbita à mulher, uma violação em potencial a seus direitos fundamentais que aproxima-se das figuras da tortura e tratamento desumano e degradante. Ao que transparece, no entendimento de Weber, a gestação configura uma injusta discriminação jurídico-biológica que pune e inferioriza a mulher[2] (Weber, 2023. p. 4, 9, 39, 49 e 64).

Nesta lógica, cabe ao Estado intervir para garantir a igualdade das mulheres com os homens, aniquilando ao máximo qualquer distinção biológica que possa lhe ocasionar algum ônus não experimentado pelo sexo oposto.

2.3 O caráter supralegal da proteção ao nascituro

Weber é contundente ao afirmar que “não há igualdade de posição jurídica subjetiva entre pessoas nascidas e o embrião ou feto” (Ibid. p. 23) e ainda que inexiste “direito fundamental à vida do feto” (Ibid., p. 25). Argui-se aqui que a correta hermenêutica jurídico-constitucional classifica o nascituro enquanto espécie do gênero ‘criança’, subgênero por vez da classe ‘pessoa humana’. Enquanto pessoa humana por nascer, o feto emerge como mais do que mera ‘vida em potencial’. Afirma-se assim a dignidade humana e titularidade de direitos fundamentais da criança por nascer, à semelhança de seus pares recém-nascidos, bebês, pré-escolares, escolares e pré-adolescentes[3].

A Constituição Federal de 1988 consagrou “a prevalência dos direitos humanos” (art. 4o, II) como princípio regedor de suas relações internacionais, estabelecendo ainda que os direitos e garantias ali expressos não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais (art. 5o, §2o).

A decisão do RE 466.343/SP no STF consagrou o status supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos no Brasil, “abaixo da Constituição, mas acima das leis comuns”. Assim sendo, a não-especificação no texto constitucional de um marco temporal de início da vida e do exato status jurídico do nascituro, poderá – e deverá – ser suplementada pelo conteúdo inserido na ordem normativa brasileira com caráter de supralegalidade, decorrente dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos.

Extrai-se deste mesmo julgamento o princípio da vedação ao retrocesso social. Nas palavras do Ministro Cezar Peluso:

tudo aquilo que é incorporado pela Constituição à ordem jurídica em termos de redução do quantum despótico não pode, salvo por ato revolucionário, ser restabelecido, ressuscitado, como retorno a estado anterior à redução da margem de poderes do Estado (Ibid.,. fl. 1278).

Isto é, uma vez reconhecida a proteção da personalidade humana e vida intrauterina do nascituro, resta vedado o retrocesso de direitos para diminuir a proteção ao nascituro e legitimar o aumento do ‘quantum despótico’ do Estado.

Recorda-se do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quando esta considera “que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Entre os múltiplos artigos que indicam o direito do nascituro à vida, à dignidade e ao tratamento isonômico enquanto pessoa humana, nacional e cidadão, reserva-se especial nota aos arts. 3o (“Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”) e 6o (“Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a Lei”). Reitera-se o caráter supralegal destas estipulações no ordenamento jurídico brasileiro, o que por si só já consagraria a personalidade jurídica e direito à vida dos nascituros – seres humanos por nascer.

Na Convenção sobre os Direitos da Criança (ratificada pelo Brasil em 1990), o conceito de criança para a Convenção e seus signatários (ou seja, para o Brasil) é estabelecido objetiva e inequivocamente em seu primeiríssimo artigo. Versa o art. 1o: “Para efeito da presente Convenção, considera-se criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade”. Sendo o nascituro indubitavelmente um ser humano, com menos de 18 anos de idade, certo sua classificação jurídico-constitucional enquanto criança, com correspondente proteções e direitos.

Na sequência, o art. 6o da Convenção estabelece em seus incisos que I – “Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida” e II – “Os Estados Partes devem assegurar ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança”.  Evidente que a obrigação estatal estabelecida aqui de assegurar ao máximo a sobrevivência e desenvolvimento da criança colide, frontalmente, com qualquer pretensão de descriminalizar e viabilizar o aborto voluntário de crianças in utero.

Novamente, o caráter supralegal desta Convenção impõe-se, com seu “condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante” (STF, 2008, p. 55, fl. 1160).

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU entrou em vigor no Brasil em 1992 por meio do Decreto nº 592/1992. Cita-se aqui seu art. 6o, I: “O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”. Firmada a personalidade humana do nascituro, identifica-se aqui mais uma reiteração da obrigatória proteção legal de seu direito à vida, com atendente vedação à privação arbitrária desta vida –  gênero do qual a hipótese de discriminalização de aborto voluntário é espécie.

Tais disposições são ecoadas na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, o Pacto de San José da Costa Rica cuja proteção do direito à vida do nascituro é evidenciado pela redação do art. 1o, I, quando este diz que

Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, (…) ou de qualquer outra natureza, (…) ou qualquer outra condição social”. (…) “Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.[4]

O art. 3o (“Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica”) e a interpretação dada por Weber ao art. 4o (que expressamente estipula o direito à vida “em geral, desde a concepção”) desta Convenção não merece prosperar ante os parâmetros bastante delimitados adotados pelo Comité Jurídico Interamericano.

Transcreve-se que a ressalva consagrada pelo termo “em geral” (en general) se deve a casos excepcionais que podem vir a excluir a ilicitude do aborto, conforme indicado pela própria Ministra em seu voto:

(A) cuando es necesario para salvar la vida de la madre; B) para interrumpir la gravidez de una víctima de estupro; C) para proteger el honor de una mujer honrada; B) para prevenir la transmisión al feto de una enfermedad hereditaria o contagiosa y, E) por angustia económica (Weber, 2023. p. 28).

Vê-se simultaneamente consagrada uma proteção genérica do direito fundamental do nascituro à vida – desde sua concepção – e um rol taxativo de cenários extremos ou limítrofes onde este direito é atenuado ante a colisão com outros direitos fundamentais proeminentes (seja da gestante, seja do feto).

Ao interpretar o referido artigo do Pacto, tendo por base a jurisprudência norte-americana, a Relatora seguiu o entendimento do caso baby boy v. EUA:

A Convenção Americana foi mais explícita, para rechaçar o argumento da existência da vida desde a concepção, adotando a expressão “em geral”, como metodologia jurídica para dar aos Estados liberdade de conformação decisória a respeito da interrupção da gestação, como muitos países já adotavam, incluído o Brasil.

Contudo, melhor sorte não assiste ao recorte feito pela Relatora[5]. Logo em seguida do referido trecho do Pacto, há a previsão expressa no seu art. 4, inciso 1, de que “Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Este conjunto de palavras não deixa qualquer indício de dúvida, ambiguidade nem se vale de “conceitos abstratos e genéricos” (Weber, 2023. p. 17), antes realçando com objetividade o compromisso daquele documento com a proteção completa à vida humana desde a concepção.

Em que pese a argumentação construída pela Ministra para afastar a inviolabilidade do direito à vida e os direitos civis do nascituro pela ausência de manifestação expressa sobre o conceito de vida do texto constitucional e o Código Civil, segundo o voto, não é possível comprovar se até as 12 primeiras semanas o “feto” pode ser considerado ser vivente.

Dessa forma, a única saída lógica possível seria desconsiderar que o produto da conjunção carnal entre dois seres humanos com capacidades físicas e biológicas para se reproduzir seria, o produto natural, outro ser humano.

A partir do próprio “sistema normativo qualificado por sistematicidade e coerência interna” (Weber, 2023. p. 8), são verificadas as inconsistências normativas com a integralidade protetiva que o Pacto San José da Costa Rica buscava conferir ao ser humano.

Ademais, é preciso apontar que o reducionismo interpretativo do Pacto de San José da Costa Rica é extremamente custoso em termos humanitários. O referido pacto é produto da aliança das nações após o reconhecimento dos diversos crimes humanitários cometidos no período das grandes guerras.

Urge lembrar, portanto, que muitos dos conflitos da década de 50 se iniciaram a partir da desumanização de grupos étnicos. Homens e mulheres de todas idades foram exterminadas, perseguidas e mortas, a partir da construção lógica da supremacia de direitos frente ao “outro”. Portanto, foi a partir desse quadro que tanto a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, como a Convenção dos Direitos do Homem reconheceram a necessidade de resguardar a vida na sua integralidade.

Por fim, é evidente que a interpretação restritiva do art. 4º do Pacto de San José da Costa Rica demonstra-se incongruente com o propósito original e com o restante do conteúdo do Tratado Internacional, o qual possui força de norma constitucional no ordenamento jurídico pátrio, com base em sede doutrinária[6].

O Decreto 10.932, de 2022, integrou no ordenamento jurídico nacional a  Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (2013) como Emenda Constitucional, nos termos do art. 5o, §3o, da CF/88. A dita Convenção adota como pressuposto preambular “a dignidade inerente e a igualdade de todos os membros da família humana”, a qual necessariamente inclui a prole humana, nascidos ou não.

Diz-se explicitamente que “Todo ser humano é igual perante a lei e tem direito à igual proteção contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, em qualquer esfera da vida pública ou privada” (art. 2o) e ainda:

Todo ser humano tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção, em condições de igualdade, tanto no plano individual como no coletivo, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados na legislação interna e nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes (art. 3o).

Observa-se de plano a ampla proteção à vida e titularidade de direitos fundamentais do nascituro, enquanto ser humano e membro da família humana, que está consagrada nacionalmente em normas e tratados com caráter constitucional e supralegal, integrando assim os direitos e garantias da CF/88 sujeitos à vedação do retrocesso social.

A ratificação de tais documentos internacionais em nada conflita com a proteção constitucional da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa (art. 1o, III) e da igualdade de todos perante a Lei, “sem distinção de qualquer natureza” (art. 5o, caput). Pelo contrário, confirma-se e outorga-se juridicamente a plena expressão de tais disposições.

Posto tudo isso, refuta-se a interpretação e o uso dos artigos da Constituição pela Ministra em seu voto, pois, primeiramente, ao interpretar restritivamente “brasileiros e estrangeiros” (art. 5°, caput da Constituição Federal)  contraria-se o objetivo-fim do legislador, qual seja ampliar a proteção da inviolabilidade à vida também aos estrangeiros residentes no Brasil, ao limitar o alcance do art 5°, caput da Carta Magna apenas aos expressamente mencionados no rol do art. 12 da Constituição Federal.

Segundo, há que se falar da incoerência do uso de um artigo que trata acerca de regras da nacionalidade, e, justamente por pertencer a essa categoria, menciona-se “nascidos” em seu dispositivo, pois o Brasil usa o local de nascimento – ius solis – como critério da nacionalidade, como se direito fundamental à vida tratasse. É uma transposição indevida do texto constitucional para tratar de uma questão de elevada e complexa importância.

Embora os documentos internacionais não sejam categóricos, todos reconhecem a necessidade de proteção internacional ao nascituro. O próprio Supremo Tribunal Federal (STF), no caso da ADI 3510, admitiu a possibilidade de proteção ao nascituro, embora esse precedente tenha estabelecido limitações.

Portanto, o voto da ministra proíbe, no âmbito constitucional, a proteção ao nascituro, não apenas impondo restrições, mas negando completamente o reconhecimento legal da sua proteção.

2.4 O caráter infralegal da proteção ao nascituro

A proteção à personalidade humana da vida intrauterina, com atendente titularidade de direitos, é corroborado pela legislação específica infraconstitucional. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90) considera como criança “a pessoa até doze anos de idade incompletos” (art. 2o), englobando assim as pessoas humanas por nascer, desde sua concepção.

Estipula ainda o ECA que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” (art. 3o), vedando ainda a discriminação de “nascimento… idade” (art. 3o, p.ú) e “qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” que atente contra seus direitos fundamentais (art. 5o).

Mister relembrar aqui o que diz a própria Ministra acerca da centralidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro, a saber:

Dos elementos textuais que identificam a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB), não se verifica referência à vida humana, mas antes à pessoa humana. A dignidade da pessoa humana funciona na engenharia constitucional, em uma via de mão dupla que se retroalimenta, como seu fundamento primeiro e sua finalidade última, colocando a pessoa humana e sua ética digna como premissa e como razão de ser do projeto constitucional (Weber, 2023. p. 20).

Sendo a vida ‘fundamento primeiro e finalidade última’ da Constituição Federal, incongruente arguir a inconstitucionalidade da proteção mais integral e abrangente possível às vidas brasileiras concebidas e em desenvolvimento. Se no âmbito do Direito Ambiental se protege o meio ambiente enquanto bem de uso comum do povo e direito intergeracional, contraditório seria não proteger o direito à vida daqueles cujo direito ao meio ambiente é tão vigorosamente afirmado e protegido na legislação e jurisprudência relevante. Especialmente, pela decorrência que o direito ao meio ambiente equilibrado e preservado decorre do direito à saúde, em seu sentido mais pleno, e este do direito à vida.

Ainda considerando a preocupação do ECA para com os nascituros, sua abrangência é indicada de maneira explícita e inequívoca pelo capítulo intitulado “Do Direito à Vida e Saúde”, no qual se dispõe especial proteção à gestante de modo a garantir a vida e saúde do nascituro, e ainda, pela sua abertura: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência” (art. 7o). Evidente que a descriminalização do aborto voluntário do vida intrauterina até 12 semanas incompatibiliza-se enquanto política social pública que “permita o nascimento e o desenvolvimento sadio”, antes inviabilizando-os por completo.

Pertinentes, por conseguinte, a previsão constitucional do direito social à proteção à infância (art. 6o, caput) e do “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança (…) com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde” e etc. (art. 227, CF/88). A análise do direito à vida, saúde e autodeterminação sexual e reprodutiva da mulher deve se dar, portanto, obrigatoriamente à luz da “absoluta prioridade” garantida constitucionalmente ao direito à vida e à saúde da criança.

2.5 Da preservação e garantia dos direitos da gestante

No julgamento da ADPF 422, discute-se única e exclusivamente a gestação e o nascituro fruto do intercurso sexual consentido, havido entre pessoas capazes, juridicamente aptas à consentir. Não se discute portanto a constitucionalidade do excludente de ilicitude previsto no art. 128, II, do Código Penal, que não pune o aborto resultante de estupro e realizado com consentimento anterior da gestante.

Incabível, portanto, o extenso tratamento da Ministra para com a “gravidez indesejada”, considerando a manutenção da criminalização do aborto uma violação ao direito à saúde e integridade física ou psíquica da mulher (Weber, 2023. p. 29), “uma forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade” (Ibid, p. 41), uma “ingerência arbitrária na esfera privada das pessoas” (Ibid., p. 44), uma condenação a pior condições de saúde (Ibid., p. 88) e ainda a imposição de um ‘ônus excessivo baseado no gênero’ (p.89).

Firmada a proteção na legislação constitucional, específica e internacional ao nascituro enquanto pessoa humana com direito à vida e titular de direitos fundamentais, resta vedada a caracterização “arbitrária” no que se refere à proteção de sua sobrevivência, integridade física e cuidado.

Ao dizer que “a maternidade não há de derivar da coerção social fruto de falsa preferência da mulher, mas sim do exercício livre de sua autodeterminação na elaboração do projeto de vida” (Ibid., p. 40), que “compete [ao Estado] respeitar as liberdades individuais da mulher” e que “a maternidade neste contexto, há de resultar de decisão, fundada na liberdade reprodutiva do planejamento familiar” (Ibid., p. 41), Weber aparenta olvidar-se da natureza estritamente consentida das relações sexuais em tela.

É cediço na literatura médica/científica e na educação sexual amplamente disponibilizada online o fato que não há método contraceptivo absolutamente infalível: preservativos masculinos, pílulas, dispositivos intrauterinos (DIU) e até mesmo abortos[7] carecem de uma taxa de “êxito” de 100%. Assim sendo, impossível considerar a gestação decorrente da relação sexual consentida como espécie de invasão, imposição ou coerção à gestante. A possibilidade de fecundação está sempre presente no coito heterossexual, podendo ser minimizada por meio de múltiplos artíficios, mas jamais eliminada por completo.

Dessarte, a igualdade jurídica entre progenitor e progenitora obriga e implica a ambos desde o momento da concepção, respeitado suas respectivas diferenças sexuais-biológicas. Reconhecida a paternidade, fica este responsável pelos alimentos do nascituro. Reconhecida a maternidade, fica esta responsável pela gestação do nascituro. Escapa-se da tutela do direito buscar equiparar as realidades biológicas envolvidas, desobrigando a mãe gestante ante percebida injustiça biológica ou onerosidade natural excessiva, já que somente ela e não o progenitor podem gestar o embrião. Pode-se, porém, intensificar a responsabilidade do progenitor para que o ônus da gestante seja minimizado e o seu equiparado ao dela, dentro da razoabilidade e possibilidade jurídica.

Não se pode imaginar, portanto, a gestação indesejada como uma instrumentalização do corpo da mulher pela sociedade, pelo patriarcado, pelo Estado ou por um corpo estranho. Nem tampouco pode-se imaginar um direito fundamental à prática sexual livre de suas consequências naturais, previsíveis e evitáveis. Dizer que:

o impacto desproporcional, em verdade, incrementa o estigma social sobre a mulher que não escolhe pela maternidade como projeto de vida digna, na medida em que a tutela penal vincula imposição de conduta à condição biológica da mulher (Ibid., p. 96).

no contexto da concepção consensual de um filho, é ignorar o poder de escolha de conduta já efetuado pelos progenitores no momento do congresso carnal.

Reitera-se: a concepção consensual de um nascituro – mesmo que indesejado – acarreta obrigações e deveres para ambos os progenitores. A “livre determinação da personalidade” (para usar termo da Ministra) dos progenitores é limitada pelo dever assumido, ao conceber, de garantir o desenvolvimento da personalidade do terceiro sob seus cuidados – à imagem e semelhança da restrição da “livre determinação” de qualquer pai, guardião ou tutor ante os deveres assumidos enquanto houver um menor de idade sob seus cuidados.

Ser mãe ou pai não pode ser considerado uma violação dos direitos fundamentais da pessoa, à sua autodeterminação ou possibilidade de construir um projeto de vida digno para si, nem de exercer sua liberdade sexual e reprodutiva – sendo, inter alia, a plena concretização de todos estes direitos.

Em uma sociedade, todos os membros possuem deveres. O Direito apenas existe porque o ser humano, enquanto agente livre, é capaz de escolher suas ações e, por consequência, assumir a responsabilidade por seus atos.

De plano, aponta-se como deveres decorrentes da concepção não somente a obrigatoriedade do pagamento de alimentos (com possibilidade inclusive de prisão civil), mas também o obrigatório sustento até à conclusão da formação universitária e à inclusão obrigatória do novo herdeiro na legítima de seu espólio. Inexistente, aqui, violação ao direito de escolher a pater/maternidade, pois esta foi tomada no momento em que os agentes – prevendo a possibilidade do resultado ‘gravidez’ – mesmo assim decidiram agir, assumindo o risco de produzi-lo. O paralelo com o instituto do dolo eventual é intencional.

Seria um erro dizer que, portanto, tal entendimento restringiria a autodeterminação dos progenitores excessivamente. A abstinência tem o condão de zerar as chances de gestação; o uso de métodos contraceptivos, de os minimizar. Após o parto, é facultado à parturiente a entrega voluntária do recém-nascido para adoção, direito ao qual não existe paralelo ou análogo para o progenitor, em reconhecimento da desigualdade biológica do cenário para o pai e a mãe. Não relacionar-se sexualmente, esterilizar-se, relacionar-se sexualmente com precauções, assumir a responsabilidade pela criança concebida ou colocá-la à adoção indicam, de plano, a multiplicidade de escolhas das quais a gestante é titular plena no decurso da concepção e gestação de um filho.

A presunção de que o aborto é única e exclusivamente uma materialização sem mácula do direito das mulheres à saúde e à autodeterminação ignora o vasto leque de possíveis contrafeitos e complicações à saúde – especialmente mental, reprodutiva e sexual – da mulher, fato ignorado pela Ministra em sua fundamentação. Há algo paradoxal e mitológico (no sentido grego, olímpico do termo) na presunção infundada de que o abortamento do filho garantirá a mais plena expressão de saúde e bem-estar para a mãe.

Por fim, contextos históricos pregressos nos quais a mulher não teve “vez ou voz” (cf. Weber, p. 33), foram invisibilizadas e oprimidas, privadas de direitos e desumanizadas (especialmente em sua livre determinação da personalidade, liberdade reprodutiva e sexual) não podem servir de pretexto para que se cometa os mesmos males contra outra parcela, ainda mais vulnerável da população – a saber, os nascituros. No Estado Democrático de Direito, deve-se interromper o ciclo de violência e desumanização, não direcioná-lo contra os mais fracos.

Deve-se portanto garantir os direitos das mulheres – inclusive aquelas ainda por nascer – e simultaneamente garantir os direitos de todas as crianças in utero, sopesando cuidadosamente eventuais conflitos, possíveis como em qualquer outra relação. Observa-se esta pacificação nas existentes excludentes de ilicitude previstas no Código Penal e na jurisprudência do STF, por exemplo.

A mitologização catastrofizante do passado historicamente inespecífico da mulher, avaliado à luz de valores feministas pós-modernos que lhe são anacrônicos, tratando esta realidade como historicamente uníssona e consistente, não pode servir de embasamento técnico-jurídico de uma decisão desta monta, nem tampouco legitimar a reprodução do exato mesmo cenário rechaçado na atualidade, contra outro grupo vulnerável[8].

A glorificação do aborto enquanto “rompimento voluntário de uma mulher com esse pacto social de maternidade (ou dispositivo) como destino, desnaturalizando-o; indiretamente denunciando sua proveniência das relações de poder” (Ibid., p. 97) consagrando o aborto como espécie de ferramenta de libertação e empoderamento feminino, novamente aparenta ignorar a responsabilidade da gestante pela concepção de seu filho e a nova, ainda mais violenta, relação de poder instaurada entre mãe abortante e filho abortado.

A mulher, responsabilizada pela criança concebida (quer a deseje ou não, quer a mantenha ou a dê para adoção) não é em momento algum diminuída enquanto “sujeito autônomo de direito no tecido social e jurídico” (Ibid., p.100), sendo antes afirmada e honrada como tal, na medida em que é responsabilizada pelos seus atos. Afirma-se idem quanto às obrigações – não somente alimentícias, mas também afetivas, sociais, e jurídicas – do genitor.

Além disso, a gestação, temporalmente limitada, não impede a entrega voluntária no nascido vivo para adoção. A continuidade da gestação possibilita a entrega voluntária para adoção, o que esvazia o argumento de prejuízo ao projeto de vida. A continuidade da maternidade não é impositiva pelo direito vigente.

A queixa da ministra de que

A fórmula institucional atualmente empregada é que se mostra excessiva ao não considerar a igual proteção dos direitos fundamentais das mulheres, dando prevalência absoluta à tutela da vida em potencial (feto) (Ibid, p. 99).

não é adequadamente – ou proporcionalmente – sanada pela inversão do quadro, absolutizando a livre orientação e determinação da mulher e a completa desconsideração dos direitos fundamentais do nascituro. Ademais, a lei admite exceções à tutela da vida em potencial.

Entende-se ainda que a especial proteção à família no art. 226 da Constituição Federal denota o claro e especial interesse do Estado nas gerações futuras, ao dizer “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” Incompatível com tal tutela a livre exterminação da prole que perpetua a instituição – e, enfatiza-se, a própria nação – e que historicamente sempre foi reconhecida como seu telos principal.

Portanto, a necessária “adoção de políticas de estímulo à responsabilidade (feminina e masculina), de perfil preventivo no acesso à educação sexual e aos meios de promoção da liberdade reprodutiva consciente” (p. 92) deve ser acompanhada e calibrada por políticas paralelas de estímulo à responsabilidade feminina e masculina após a concepção, concretizando assim a tutela constitucional da família, “base da sociedade”, e o objetivo declarado de uma sociedade fraterna e “livre, justa e solidária” (art. 3o, I, CF/88) – obrigatoriamente uma onde não se pode exterminar (permanentemente) vidas vulneráveis pela inconveniência (temporária[9]) que podem ocasionar aos seus responsáveis.

Por derradeiro, segundo os dados do Relatório de Informações Penais – RELIPEN, respeitante ao 1º Semestre de 2023 pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), dentre as centenas de pessoas presas no Brasil pelo crime de aborto, apenas duas destas são mulheres. Diante de tamanha disparidade de gênero no relatório oficial do Governo, comprova-se que a descriminalização do aborto favorece primordialmente o homem agressor.

2.6 Da laicidade do Estado

Weber se queixa: “O aborto é contrário à moral majoritária da sociedade, negligenciando qualquer abordagem do problema desde o espaço da moralidade privada e sua relação com o caráter laico do Estado” (Weber, 2023. p. 6). Necessário então considerar a relação entre a moralidade privada e moralidade pública do Estado, à luz da laicidade deste.

A neutralidade axiológica e laicidade do Estado permite a proteção às minorias, mesmo contramajoritariamente, impedindo que eventuais maiorias (religiosas, políticas, etc.) violem os direitos fundamentais de grupos vulneráveis. Tal previsão difere-se violentamente de um legislar – ou julgar – proselitista, que busque intencionalmente violar a moralidade e senso de bem comum de um povo, impondo visão de mundo ou valores que lhe sejam estranhos, desgostosos e/ou nocivos à tessitura social.

Considerando a profunda e vasta religiosidade do povo brasileiro, majoritariamente cristã conforme comprovado em todos os censos do IBGE, e o elevado apreço da tradição judaico-cristã pela vida, configura-se situação paralela ou quiçá mais contrastante que a dos EUA. A atuação contramajoritária do Supremo deve-se sempre vigiar para não degenerar, no limite, a uma espécie de tecnocracia antipolítica, onde a tecnicidade esvazia por completo a democracia e impõe-se forçosamente por sobre a massa popular – que acaba sendo considerada como iletrada, alienada, inconsciente ou em necessidade de salvação.

Recorda-se como, após os ataques de 11 de Setembro, 2001, o filósofo ateu Jurgen Habermas se viu forçado a repensar sua leitura do fenômeno religioso como resquício de um passado ultrapassado. Em “Dialética da Secularização”, registro de histórico debate entre Habermas e o Cardeal Josef Ratzinger (o futuro Papa Bento XVI), Habermas observa como o “o processo democrático [é] uma formação inclusiva e discursiva da opinião e da vontade” (Habermas e Ratzinger, 2007, p. 29), na qual religiosos e incrédulos são co-autores e co-legisladores de uma mesma sociedade, devendo ouvir e colaboração democraticamente.

Insiste-se, assim, em enfatizar que a laicidade não significa a restrição do fenômeno religiosa à esfera privada, e sim a consideração democrática e não-impositiva das moralidades privadas, com atendente proteção da Carta Magna à liberdade de crença, consciência e expressão, e ainda às convicções políticas e filosóficas, dos grupos e indivíduos conflitantes. O conflito não é um problema, mas antes aspecto integral da democracia, sendo primordialmente pacificado por meio da representatividade materializada no Legislativo eleito. Daí, quiçá, o problema de se decidir temas tão conflituosos no Judiciário, mesmo que tecnicamente possível.

Ora, a douta Ministra reconhece que o aborto é figura que ofende à maior parte da nação – e não se tem conhecimento de outra parcela que o defenda enquanto elemento necessário de sua moralidade privada. O conflito estaria, portanto, entre a tradição de um povo e a cosmovisão importada por uma elite cultural.

Enfatiza-se que a decisão de tão polêmica questão na seara judiciária priva o povo de sua correta representação democrática, personificada nos integrantes políticos do Congresso Nacional, fato suscetível de fomentar decisão distante dos anseios e valores da sociedade tutelada.

A decisão da Ministra de proferir seu voto antes de ouvir os amici curiae admitidos no processo apenas intensifica o esvaziamento da representação popular. No caso, observa-se especial rejeição da parte da Ministra quanto à parcela (majoritária) religiosa da população, como se problema ou obstáculo fossem. Recorda-se que, segundo o último censo do IBGE, 9 em 10 brasileiros se consideram cristãos de alguma espécie.

Não argui-se que a Lei deve seguir os ditames de qualquer religião, mas antes, ante a previsão constitucional que cabe “a colaboração de interesse público” (art. 19, I, CF/88) entre o Estado e as instituições religiosas indica-se claramente a possibilidade de cenários, como o presente, onde o Estado não poderá bem governar e cumprir sua tarefa a despeito de tais instituições.

A Ministra diz

De outro lado, a solução normativa pela criminalização esconde a necessária abordagem interdisciplinar sobre uma realidade complexa, e olha apenas a partir da perspectiva da cidadania familiar baseada no pater familias, derivado de uma cosmovisão social hierárquica e valorativa (Weber, 2023. p. 87).

ignorando que uma nova perspectiva de cidadania familiar baseada na mater familias reforçará “uma cosmovisão hierárquica e valorativa” onde algumas vidas valem menos que outras, dependendo da idade, utilidade e status de nascimento.

Em seu afã de assegurar direitos à mulher, a Ministra se esquece da necessária abordagem interdisciplinar, onde a educação sexual, uso de preservativos e contraceptivos, responsabilização igual do genitor, podem dar maior vida e substância ao tipo penal cuja baixa eficácia alega e lamenta.

Como já observado, o feminismo de Weber é marcado por uma forte adjetivação liberal, inclusive em sua rejeição à realidade religiosa do país.

Uma vez que as religiões tradicionais são vistas como fragmentadoras do corpo político, os liberais preferem – ou melhor, exigem – que elas se limitem ao plano da convicção privada (Koyzis, 2021, p. 91).

Já se observou na literatura específica a possibilidade do liberalismo adotar um certo caráter tirânico, que

rejeita qualquer autoridade que o transcenda, considera ilegítimo o que quer que não se conforme a ele, e não reconhece nenhum princípio restritivo sobre a infinita extensão da liberdade igualitária que não seja a praticidade (Kalb, 2008, p. 1114, apud Koyzis, 2021, p. 88).

Assim, o feminismo liberal de Weber passaria até mesmo a assumir uma qualidade nitidamente dogmática e fideística, o que justificaria certas mitologizações e lacunas em sua fundamentação (como por ex. a rejeição do fenômeno religioso, a ausência de qualquer análise dos malefícios do aborto para a mulher, etc.). Sob a premissa de proteger a laicidade do Estado e a liberdade das mulheres, viola-se esta mesma laicidade e neutralidade axiológica, tornando o aparato estatal dogmático na rejeição da autoridade e restrições à liberdade – mesmo que juridicamente consagradas e necessárias (como, por exemplo, a restrição à liberdade plena de pais quando estes têm filhos sob seus cuidados).

2.7 Dos diálogos institucionais e apelo aos demais poderes

Em seu voto, a Min. Rosa Weber se vale da expressão “diálogos institucionais”, ou sua forma escrita no singular, ao menos quatro vezes. Deve-se questionar: o que são estes “diálogos institucionais”?

As teorias dos diálogos institucionais foram desenvolvidas com a intenção de aprimorar o processo de interpretação constitucional. Elas buscam contornar a ideia de que um único órgão detenha o monopólio desse processo, passando a enxergá-lo como uma dinâmica compartilhada entre os poderes. Uma de suas finalidades é diminuir a dificuldade contramajoritária, que, em outras palavras, representa a tensão causada pelas decisões em sede de controle de constitucionalidade, já que, embora, por um lado, busquem restabelecer a ordem delineada pelo legislador constituinte originário, por outro, anulam atos que passaram pelo escrutínio majoritário (o processo legislativo) (Bateup, 2006, p. 1.109).

Algo a ser notado é que se fala em diálogos institucionais, no plural. Isso porque não há apenas uma teoria dos diálogos, e sim várias. Estas foram catalogadas por Christine Bateup (2006), que as dividiu em dois grandes grupos: teorias normativas do diálogo e teorias descritivas do diálogo.

No primeiro grupo, Bateup situou as teorias do método judicial, que são basicamente três: teoria do aconselhamento judicial (theories of judicial method), regras centradas no procedimento (process-centered rules) e teoria do minimalismo judicial (judicial minimalism). No segundo grupo, estão as teorias estruturais do diálogo, cinco ao todo: teorias da construção coordenada (coordinated construction theories); teorias do princípio judicial (theories of judicial principle)[10]; teorias do equilíbrio (equilibrium theories); teorias da participação (partnership theories); e fusão dialógica (dialogic fusion).

A intenção não é, obviamente, descrever cada uma delas. Porém, uma análise sincera do voto ora apreciado reclama atenção ao primeiro grupo, que foi contemplado pela Ministra. Isso porque, em uma seção relativamente pequena, ela se propõe a abordar os limites da cognição jurisdicional e os diálogos institucionais, momento em que se vale da técnica decisória do apelo aos demais poderes. Mas, a pergunta que se coloca, a princípio, é: está havendo mesmo diálogo? Vejamos.

Segundo a Ministra, a descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação não é “instrumento normativo autossuficiente dos direitos reprodutivos das mulheres, sua autonomia pessoal, liberdade e dignidade” (Weber, 2023. p. 101). Seria necessária, portanto, uma vertente prestacional, ou seja, que o Estado prestasse normativa e materialmente os meios para a realização desses ditos direitos – entre eles, o aborto nos moldes que passara a estabelecer.

A partir daí, Weber faz duas grandes sugestões. A primeira é em prol da estruturação de um marco normativo que viabilize a prestação material do que está sendo determinado e um sistema sanitário que, em suas palavras, “assegure a justiça social reprodutiva”. A segunda sugestão, por sua vez, se dá nos seguintes termos:

Compete ao Estado realizar os ajustes institucionais em matéria de federalismo para criar fórmulas capazes de assegurar a permanente cooperação entre os órgãos administrativos, a partir da articulação entre as dimensões estáticas e dinâmicas das competências comuns atribuídas aos entes federados, em especial, no que aqui importa, quanto à remoção dos entraves normativos e orçamentários indispensáveis à realização desse sistema de justiça social reprodutivo. (Weber, 2023. p. 102).

Ao final, afirmando que não cabe ao STF elaborar políticas públicas nesse sentido, ela registra um apelo ao Legislativo e ao Executivo para que o façam.

Bem vistas as coisas, o que a Ministra fez foi indicar rumos de ação aos demais poderes, ou, na melhor das expressões, prestar conselhos sobre o que eles deveriam fazer a partir da decisão. Assim, podemos perceber que esta conduta se adequa precisamente a uma das teorias apontadas acima: a teoria do aconselhamento judicial.

O aconselhamento judicial consiste em o Judiciário indicar cursos de ação aos outros poderes, expondo sua interpretação constitucional a respeito de determinado caso. Na situação em comento, expõe-se o dever de prestação material e normativa de um sistema de justiça social reprodutiva, no qual estaria inserido o aborto até a décima segunda semana de gestação. Nessa conjuntura, a Corte fornece conselhos de caráter persuasivo e não vinculante (ou seja, cuja observância não é obrigatória), com o fim de auxiliar na elaboração ou alteração da legislação e evitar questões constitucionais futuras (Bateup, 2006, p. 1.123).

Note-se que o chamamento não envolveu a discussão do aborto em si. O intuito da relatora não foi apelar para que os poderes refletissem a constitucionalidade da prática, podendo, após acurada análise, decidir novamente sobre o tema, inclusive contrariamente à Corte. Essa seria outra teoria. A convocação se direciona, unicamente, para que se implemente o que está sendo decidido pela Ministra. Ela traçou parâmetros incontornáveis e deixou a cargo dos demais poderes agirem em conformidade. Por isso, retoma-se a questão: está havendo mesmo um diálogo?

O aconselhamento judicial é alvo de críticas. Mesmo Bateup (2006, p. 1.125-1.128) questiona se realmente se trata de uma teoria dialógica. Na sua percepção, a teoria não fornece espaço real para a discussão entre os poderes; antes, privilegia a voz do Judiciário como o principal gerador da discussão constitucional, ao passo em que desconfia da capacidade do Legislador para debater sobre princípios. Seu legado é a substituição da consideração legislativa pela decisão judicial.

Por isso, em tom incisivo, a autora descreve o aconselhamento judicial como “a theory that encourages activist judges to tell the political branches of government how to interpret the Constitution” (Bateup, 2006, p. 1.127-1.128), isto é, como uma teoria que encoraja juízes ativistas a dizerem aos demais poderes como interpretar a Constituição, já que, mesmo não operando o controle de constitucionalidade num primeiro momento, possivelmente o farão depois.

Para que não reste dúvida nesse ponto, cabe recordar que a própria Ministra faz menção à ADPF 989, de relatoria do Min. Edson Fachin, em que se aprecia o aspecto prestacional comentado acima. Assim dizendo, o tema já está perante a Corte e será decidido por ela mais cedo ou mais tarde.

Ante tais considerações, entende-se que o voto da Min. Rosa Weber não favorece a colaboração entre os poderes. Ao contrário, perpetua um monólogo no processo de interpretação constitucional.

3 CONCLUSÃO

Em uma análise jurídica sobre o voto da ministra Rosa Weber na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 442, que propõe descriminalizar o aborto voluntário até a 12ª semana de vida intrauterina, percebe-se um rol de questões jurídicas que demandam maior atenção e reflexão, pela importância do tema e seus reflexos na sociedade brasileira.

Nesse sentido, entende-se que o voto se aproxima do precedente estadunidense consagrado em Roe v. Wade, esvaziando ao máximo a proteção constitucional ao nascituro para delinear interpretações ampliativas dos direitos da mulher, agora afirmadas sem o óbice de um nascituro titular de direitos fundamentais. Não se atentou, porém, à reversão da decisão em 2022, quando a Suprema Corte dos EUA se viu impelida a anular a imposição de uma decisão judicial estranha aos valores e interesses da sociedade tutelada.

Em razão da ADPF 442 discutir, única e exclusivamente, a gestação fruto do intercurso sexual consentido, a Ministra encontra no pensamento feminista liberal o fundamento (sem data e sem fontes) segundo o qual mulheres não tinham “vez ou voz” e tinham sua liberdade, bem como autodeterminação, restritas, para atestar desigualdade biológico-jurídica entre os sexos e assim zelar pela imediata reparação e ampliação dos seus direitos pelo Estado.

Desta forma, sob o princípio da dignidade da mulher e da proporcionalidade, a ministra defende a não intervenção de terceiros na autodeterminação feminina sobre a gestação, negando, inclusive, o conflito dessa proteção constitucional com a vida do nascituro, cujo valor só existe enquanto a mãe queira prosseguir com a gestação; pois, sem a personalidade jurídica, se torna mera parte dos direitos reprodutivos da mulher. Proíbe-se, por via judicial, a existência de qualquer interesse constitucional na proteção da pessoa humana ainda não nascida.

Por outro lado, prossegue em ignorar juridicamente as responsabilidades e obrigações que decorrem da relação sexual, mesmo em um contexto no qual consagra-se a liberdade de autodeterminação e auto expressão sexual como direito fundamental. No Direito Brasileiro, há diversas consequências apontadas, dentre elas o risco de adquirir doenças (art. 130, CP) e a possibilidade de uma gravidez.

Surpreendentemente, o conceito de gestação, fruto de um ato sexual consentido, sem violência ou risco à vida da gestante é entendido pela ministra como um castigo, privação inesperada e súbita, injusta discriminação jurídico-biológica que pune, inferioriza a mulher e viola seus direitos fundamentais de forma semelhante à tortura ou tratamento desumano e degradante.

Além disso, ignora-se que, após a gestação, o recém-nascido poderá ser entregue voluntariamente para adoção, possibilitando que a mãe prossiga seu projeto de vida sem outras implicações, diferentemente do aborto, em que a escolha será terminantemente final e a morte do nascituro não terá como ser desfeita, o que poderá afetar para sempre a integridade psíquica da mulher.

Ao questionar a validade constitucional da recepção integral dos arts. 124 e 126 do Código Penal, Rosa Weber impõe ainda a sua visão de mundo em completo descompasso com:

  1. A interpretação dada à vida desde a concepção nas discussões da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e, consequentemente, pela sua proteção estatuída nos arts. 1º, III (direitos humanos), 5º (direito à vida), 6º e 227 (proteção a infância) da Constituição Federal de 1988, para suplantar a competência do Congresso Nacional;
  2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu art. 3º (Todo ser humano tem direito à vida) e 6º (todo ser humano tem o direito a ser reconhecido como pessoa), o Pacto de San José da Costa Rica em seu art. 1º, II, (pessoa é todo ser humano), 3º (Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica) e 4º, ao explicitamente tutelar os direitos fundamentais do nascituro desde a concepção, salvo os casos extremos já compreendidos no art. 128, I e II do Código Penal. Menciona-se também o art. 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança e os arts. 2º e 3º da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância;
  3. A nível infraconstitucional, o art. 3, parágrafo único, e o art. 7 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que protegem direta e indiretamente o direito à vida da criança por nascer;
  4. A jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal na ADPF 54, na qual o princípio da proporcionalidade sustentava que os fetos anencéfalos não tinham direito à vida pela impossibilidade fática no contexto extrauterino, pela ausência de desenvolvimento pleno do sistema nervoso bem como a ADI 3510, que reconheceu o feto como sujeito de proteção legal.
  5. Os dados oficiais do primeiro semestre de 2023 do Governo Federal, que por meio do Relatório de Informações Penais – RELIPEN, demonstram que os presos pelo crime de aborto no Brasil são predominantemente homens e que a sua descriminalização favorecerá primordialmente o homem agressor.

Diante da reinterpretação de todos os dispositivos legais e jurisprudenciais acima citados, o precedente aberto pelo voto da ministra serve de fundamento para a legalização do aborto voluntário até o 9º mês de gestação da criança, muito além do marco temporal de 12 semanas proposto na inicial do Partido Socialismo e Liberdade – PSOL.

Isso sem apresentar argumentos filosóficos, científicos ou metafísicos que sustentem o marco, salvo o argumento de que a exclusão da ilicitude em casos específicos extremos (salvaguarda da vida da gestante ou estupro) seriam suficientes para integralmente desconsiderá-lo.

Ademais, cabe destacar que, na 57ª legislatura (2023 – 2027), o PSOL elegeu 12 deputados federais dentre as 513 cadeiras da Câmara Federal, ou seja, é inexpressivo na implementação de suas pautas no Congresso e, em manifesto lawfare, recorre ao Judiciário para impor violações aos direitos humanos de uma criança no útero de sua mãe, em patente contrariedade aos valores e moralidade do povo brasileiro, como bem aponta a ministra Weber (2023. p. 6).

Outro reflexo temerário do voto é a sua desconsideração às limitações sociais e jurídicas que impedem a hipertrofia do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, ao assentar maior prestação positiva por parte do Estado, permeado de elementos ideológicos comprometedores da laicidade e neutralidade axiológica esperada do Estado e seu aparato. Para tanto, Weber se norteia por um imperativo político na forma em que pontua os “diálogos institucionais”, como método crescente na jurisprudência da suprema corte a fim de estabelecer como os outros poderes da república devem agir corretamente, o que afronta a independência dos outros poderes da República, bem como a representatividade política e a participação cidadã,

Curiosamente, em patente contradição a esses diálogos, ignorou a visão sobre o nascituro que o Congresso Nacional mantém desde a constituinte e, em intencional atropelo do devido processo constitucional, incluiu a ADPF 442 em pauta para sessão de julgamento virtual sem antes conceder aos amici curiae a realização de suas sustentações orais, pela impossibilidade de cumprir o exíguo prazo para cumprimento, em grave nulidade fundada no art. 83 do Regimento Interno do STF.

Tendo desde 2018 para pautar seu voto de modo a contemplar as sustentações orais de todos aqueles que ingressaram no feito, apenas inseriu em pauta de forma eletrônica, poucos dias antes da sua aposentadoria compulsória, culminando no esvaziamento da democracia ao reconfigurar e retroceder, a revelia da moralidade majoritária da população e das prerrogativas dos legitimados no processo, os direitos fundamentais de uma criança no ventre de sua mãe.

Por isso, se o voto da relatora for mantido, duas graves violações ao Estado Democrático de Direito estarão em curso. Primeiro, há uma infidelidade à Constituição, pois os argumentos pela proibição da proteção legislativa do nascituro (que são a base para liberação do aborto) são arbitrários e incompatíveis com os valores constitucionais.

Além disso, em segundo lugar, um Estado Democrático exige a possibilidade de responsabilização (accountability) sobre aqueles que estão investidos de autoridade. Quando a relatora profere um voto que sequer poderá ser proferido em plenário, trai o dever ínsito ao seu cargo, furtando-se à possibilidade do debate juridicamente democrático.

Diante do exposto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) manifesta sua preocupação com a possibilidade de a ADPF 442 declarar a inconstitucionalidade parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal, conforme sugerido no voto eivado de irregularidades processuais e nulidades regimentais da Ministra Rosa Weber. Dessa forma, resultaria na remoção da proteção jurídica do feto até o nono mês de gestação, o que está em desacordo com a opinião ética predominante da população brasileira, que, juntamente com leis nacionais e internacionais de direitos humanos, defende a proteção da vida desde a concepção.

 

AUTORES
Guilherme Joshua Fantini Blake[11]
Layla Fischer[12]
Leandro Carvalho Santos[13]
Laís de Castro Fidelis Peixoto Bezerra[14]
Ismael Anderlan Viana dos Santos Silva[15]
Leilyany Lima da Silva Castro[16]
Gabriel Dayan Stevão de Matos[17]
Matheus Carvalho[18]
Edna V. Zilli[19]

REVISORES
Lucas Oliveira Vianna
Elden Borges Souza

RODAPÉ

[1] Ou seja, diante de um conflito em que se tem dois ou mais direitos e é necessário decidir qual deles deve prevalecer, esse princípio – o princípio da proporcionalidade – se mostra como um parâmetro a contribuir para a decisão. No caso, qual decisão observa mais a proporcionalidade.

[2] Tópicos

[3] Observa-se que as crianças são titulares dos mesmos direitos, vivenciados e expressos de forma diversa e específica, apropriada a cada estágio de seu desenvolvimento.

[4] Para os propósitos do presente trabalho, presume-se a humanidade (seu ‘ser humano’) do nascituro, enquanto fato biológico e jurídico inconteste.

[5] Embora atualmente a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Internacional entendam de forma semelhante ao voto da Ministra Rosa Weber quanto à interpretação do art. 4°.

[6]Art. 5º, § 2º, da CF/88: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

[7] Refere-se aqui aos inúmeros casos documentados de fetos que sobrevivem à procedimentos de abortamento, inclusive aqueles identificados como “abortion survivors” (sobreviventes de aborto).

[8] Não se nega aqui o sofrimento das mulheres, nem no passado nem no presente – afirma-se, porém, que o sofrimento de um não pode legitimar o sofrimento de outro. Nem tampouco se nega aqui a exclusão sócio-político da mulher ao longo da história, apontando apenas que até a modernidade esta foi amplamente compartilhada pela maioria esmagadora dos homens, pelo menos no ocidente.

[9] Temporária pois a legislação faculta à parturiente que entregue o bebe à adoção, permitindo que as restrições decorrentes da gestação sejam limitadas ao período desta e o puerpério.

[10] Nesse grupo, estão as abordagens do princípio e verificação política no tribunal (principle and political checks on the court); e do princípio e articulação legislativa de políticas (principle and legislative articulation of policy).

[11] Advogado, OAB/MG 221.129. Minas Gerais. E-mail: [email protected].

[12] Graduada em Direito pela FAE Centro Universitário Curitiba. E-mail: [email protected].

[13] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade Nacional de Direito (UFRJ/FND). Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

[14] Advogada, OAB/GO 53.825. Goiás. E-mail: [email protected].

[15] Graduando em Direito pela Universidade Federal de Alagoas / Faculdade de Direito de Alagoas (UFAL/FDA). E-mail: [email protected]

[16] Advogada, OAB/AM 11.019. Amazonas. E-mail: [email protected]

[17] Advogado e Diretor Financeiro da ANAJURE. Email: [email protected]

[18] Advogado e Diretor Executivo da ANAJURE. Email: [email protected]

[19] Advogada e Presidente da ANAJURE. Email: [email protected]

REFERÊNCIAS

BATEUP, Christine. The Dialogic Promise: assessing the normative potential of Theories of Constitucional Dialogue. Brooklyn Law Review. Vol. 71, 3, 2006. p. 1.109-1.180.

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