OBSERVATÓRIO l CASO 44 – Araraquara/SP – Liberdade Religiosa e de Culto

0
1033

O que aconteceu: Decreto Municipal determinou o fechamento de prédios religiosos e estabeleceu restrições à circulação de pessoas e veículos.

Onde: Araraquara/SP.

Quando: 12 de fevereiro de 2021.

Documentos: Decreto n. 12.485, de 12 de fevereiro de 2021.

Parecer da ANAJURE

No dia 12 de fevereiro de 2021, a Prefeitura do Município de Araraquara/SP publicou o Decreto n. 12.485, por intermédio do qual estabelece uma série de medidas para enfrentamento da pandemia de Covid-19, dentre as quais destacamos a proibição de atividades presenciais realizadas por alguns segmentos, bem como restrições e orientações condicionantes ao funcionamento dos estabelecimentos considerados como serviços e atividades essenciais, assim definidos e elencados no próprio ato governamental.

A ampliação das medidas restritivas surge como reflexo do cenário enfrentado na cidade, onde a taxa de ocupação das UTIs chegou a 100% nos últimos dias e o crescimento do número de casos de Covid-19 alcançou patamares expressivos, o que pode ter relação com a identificação recente de novas variantes do coronavírus na região[1]. Desse modo, é possível que o poder público adote medidas para conter a propagação da doença, no entanto, em casos assim, os ditames constitucionais não podem ser negligenciados.

O Decreto n. 12.485/2021 proibiu a realização de atividades que gerem aglomeração pelo período de 15 dias, inclusive aquelas promovidas por entidades religiosas. O quadro de avanço da Covid-19 justifica a adoção de medidas de prevenção ao contágio, especialmente a restrição às aglomeração, desde que não haja tratamento discriminatório para os diversos setores sociais. Todavia, a norma sob análise não apenas limitou aglomerações, pois vedou, até mesmo, a abertura dos templos religiosos, como bem se pode observar no § 1º, do art. 6º:

Art. 6º. Fica terminantemente proibida a realização, por todos os munícipes, bem como pelos demais coletivos e entidades religiosas; associativas, desportivas amadoras, condominiais, de entretenimento, clubes, dentre outros, bem como pelas organizações da sociedade civil, de toda e qualquer atividade coletiva ou que implique ou resulte em aglomeração de pessoas.

§1º Fica vedada a abertura dos prédios em que estiverem instalados as entidades religiosas, associativas, os coletivos desportivos amadores, as entidades de entretenimento, os clubes, dentre outros.

Em que pese tal imposição às organizações religiosas, vemos, em contrapartida, a viabilização de meios alternativos para bares e restaurantes, que podem funcionar no formato de delivery e de drive thru, além de uma flexibilização e autorização de funcionamento, em termos gerais, dos segmentos de alimentação, saúde, logística, indústria e atendimento bancário, observadas as medidas de sanitização, distanciamento e prevenção.

Posta assim a questão, importa esclarecer que, embora o contexto da pandemia tenha trazido algumas limitações ao exercício de direitos, essas restrições não podem ser especificamente mais gravosas para as organizações religiosas. Por se tratar de um preceito fundamental, a liberdade religiosa é reconhecida na Declaração Universal de Direitos Humanos (art. 18) e resguardada em nossa Carta Magna: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, inciso VI, CRFB/88).

Nosso ordenamento jurídico também consagra a laicidade estatal, vedando à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, inciso I, CRFB/88).

Todavia, mesmo diante de robusta proteção conferida à liberdade religiosa por diplomas nacionais e internacionais, o Decreto 12.485/2021 não conferiu respaldo para a mínima continuidade das cerimônias religiosas, de forma remota, online ou “drive in”, o que é danoso para os fiéis e para a sociedade em geral. Ressalte-se que as entidades religiosas não oferecem apenas cerimônias religiosas para seus integrantes, mas também serviços de capelania e de assistência social para seus membros e para a comunidade, atividades que não geram aglomeração. Assim, entendemos que a determinação de fechamento dos estabelecimentos religiosos não guarda compatibilidade com o direito à liberdade religiosa, uma vez que obsta, desproporcionalmente, a realização de atividades já citadas que poderiam ser mantidas sob a observância das medidas de prevenção exigidas pela pandemia.

Ademais, vale mencionar a proibição contida no art. 7º do Decreto n. 12.485/2021, que veda a circulação de veículos e de pessoas para a realização de atividades não essenciais. Dois aspectos merecem realce neste ponto. Primeiro, no que diz respeito à restrição ao direito de ir e vir. Segundo, quanto ao deslocamento de ministros religiosos.

A princípio, é preciso salientar que a Constituição brasileira obstaculiza a livre locomoção apenas em contexto de estado de sítio e de defesa, nos termos dos seus artigos 136 e 139. De modo semelhante, a Convenção Americana de Direitos Humanos consagra o direito de circulação como uma regra, sendo possível excepcioná-lo apenas por meio de lei (art. 22, item 3).

Atualmente, o Brasil não se encontra em estado de sítio ou de defesa, bem como não há previsão na Lei Federal n. 13.979/2020 de medidas como toques de recolher ou proibições de circulação. A Lei n. 13.979/2020 faz referência à possibilidade de que as autoridades públicas adotem restrições à locomoção entre os estados e entre os municípios brasileiros, mas não regulamenta o deslocamento no âmbito de um mesmo município.

Na esfera local, a Lei n. 9.931/2020, de Araraquara/SP, previu algumas penalidades para o descumprimento de determinações legais ou infralegais voltadas ao combate da pandemia. A legislação, todavia, não contém dispositivo que estabeleça a possibilidade de restrição à circulação de pessoas e veículos, o que se faz unicamente por meio do Decreto expedido, o qual, por si só, não é suficiente para afastar o exercício de um direito fundamental consagrado na Constituição.

Frise-se, por fim, que a restrição à circulação de pessoas e veículos não veio acompanhada de qualquer ressalva ao deslocamento de ministros religiosos para a execução de atividades que não geram aglomeração. Desse modo, a realização de transmissões virtuais dos serviços religiosos e outras atividades que demandam pequena quantidade de participantes acaba sendo obstada, numa interferência desproporcional do poder público no exercício da liberdade religiosa.

Pelo exposto, a ANAJURE comunica que oficiará o Município de Araraquara/SP, propondo a modificação do Decreto expedido, de modo que:

  1. Seja revogado o dispositivo que determina o fechamento dos estabelecimentos religiosos;
  2. Seja suprimida a restrição à circulação de pessoas e veículos, ante a ausência de previsão legal;
  3. Em caso de manutenção das restrições à locomoção, seja garantido o deslocamento de ministros religiosos para realização de atividades religiosas que não geram aglomeração.________________________________

[1] https://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2021/02/18/o-que-vivemos-em-araraquara-e-o-prenuncio-de-algo-muito-ruim-que-esta-por-vir-alerta-prefeito.ghtml