O que aconteceu: um pastor divulgou um vídeo em seu perfil numa rede social, fazendo críticas a um painel preparado por entidades ligadas a religiões afro no Túnel da Abolição, em Recife/PE. A decisão judicial determinou a remoção do vídeo, sob o fundamento de haver indícios de discriminação religiosa.
Onde: Pernambuco.
Quando: 28.10.2021.
Decisão: Veja aqui
Parecer ANAJURE: No dia 24 de julho de 2021, o Pastor Aijalon Berto gravou um vídeo numa rede social, no qual falava sobre um painel artístico localizado no Túnel da Abolição, em Recife/PE. No vídeo, o pastor argumentava que a arte trazia representações de forças místicas ligadas à feitiçaria, sendo uma forma de reverenciar entidades malignas. Utilizando-se de discurso religioso, Aijalon afirmou “repreender” a simbologia do portal “em nome de Jesus”.
Os artistas responsáveis pelo painel visualizaram o posicionamento do líder religioso como discriminatório, e pleitearam no Judiciário a remoção do vídeo. A juíza responsável pelo caso deferiu o pedido de tutela antecipada e determinou que os réus (o pastor e o Instagram) retirassem o vídeo da plataforma. Na decisão, a magistrada afirmou:
“as declarações do réu, ao se manifestar sobre a obra dos autores, contém indiscutível indícios de prática de incitação à discriminação religiosa, legalmente vedada (art. 20 da Lei nº 7.716/89 – Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.)”.
Resta, então, aferir se o discurso do pastor ultrapassou as fronteiras da liberdade religiosa e ganhou contornos discriminatórios. Para isso, opta-se por partir de alguns pontos fixados no RHC 134.682, julgado pela 1ª Turma do STF. Nesse caso, assentou-se que o discurso proselitista é elemento essencial da liberdade de crença e intrínseco ao comportamento religioso, não revelando ilicitude, por si só, “a comparação entre diversas religiões, inclusive com explicitação de certa hierarquização ou animosidade entre elas”[i]. Diferente do proselitismo é o discurso discriminatório que, segundo a Turma, apenas se materializa quando ultrapassadas estas três etapas indispensáveis:
- Etapa de caráter cognitivo: atesta-se a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos;
- Etapa de viés valorativo: assenta-se suposta relação de superioridade entre grupos e/ou indivíduos;
- Etapa discriminatória: o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.
O discurso proselitista, embora estabeleça distinções entre as pessoas e identifique práticas pecaminosas ou malignas, não culmina na dominação ou supressão do outro, mas, na verdade, resulta, empregando os termos utilizados pelo STF, em busca por “suposta prestação de auxílio ao grupo ou indivíduo que, na percepção do agente, encontrar-se-ia em situação desfavorável”[ii]. Possuindo tais parâmetros, a 1ª Turma concluiu, que, na hipótese concreta do RHC 134.682:
“o paciente, por meio de publicação em livro, incita a comunidade católica a empreender resgate religioso direcionado à salvação de adeptos do espiritismo, em atitude que, a despeito de considerar inferiores os praticantes de fé distinta, o faz sem sinalização de violência, dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais”.
Aplicando-se tais parâmetros ao caso sob análise, é possível obter conclusão semelhante. Ainda que o discurso do pastor seja crítico e desagradável para os adeptos de religiões de matriz africana, não é possível associá-lo a um estímulo à violência, dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais. No vídeo gravado pelo líder religioso não é possível identificar um incentivo à agressão de adeptos de outros credos. A fala do pastor é imbuída de teor religioso e se dirige a denunciar, dentro de sua concepção, a falsidade e o engano presentes na manifestação religiosa expressa nos painéis do Túnel da Abolição.
É preciso considerar que, comumente, o discurso religioso se vale de verdades absolutas. Assim, há menos que se pretenda esvaziar a fé alheia, não há que se exigir do religioso que tenha outras crenças como tão verdadeiras como as próprias. Discordar e se opor, em termos argumentativos, a outra religião não é um abuso da liberdade religiosa, mas, na verdade, uma das formas de exercê-la. Situação diversa seria se essa discordância fosse acompanhada de incentivos à agressão e práticas violentas. Nesse último caso, haveria de se reconhecer a conduta discriminatória. Não é, contudo, o que se identifica na fala do pastor Aijalon.
Pelo exposto, a ANAJURE manifesta, respeitosamente, a sua discordância quanto aos fundamentos utilizados na decisão que determinou a remoção do vídeo do Pr. Aijalon Berto, entendendo que a posição do pastor está albergada pela liberdade religiosa.
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Fonte da imagem do destaque: Folha de Pernambuco – Priscilla Melo/Divulgação
[i] STF – RHC: 134.682 BA 4000980-28.2016.1.00.0000, Relator: Min. Edson Fachin, Data de Julgamento: 29/11/2016, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-191 29-08-2017).
[ii] Ibid.