CASO 11: Gandu – BA – Liberdade de ir e vir

O que aconteceu: Decreto de Gandu/BA restringiu a entrada de veículos no Município e impôs isolamento obrigatório para pessoas assintomáticas que cheguem à cidade.

Onde: Gandu/BA.

Quando: 08 de abril de 2020.

Provas: Texto do Decreto, captura de tela do WhatsApp e relatos de locais.

Decreto n. 019/2020 (ver aqui), de 06 de abril de 2020 [1].

PARECER DA ANAJURE: O Decreto nº 019/2020, de 06 de abril de 2020, do Município de Gandu/BA, em seus artigos 7° e 8o, traz as seguintes disposições:

Art. 7º – Não será permitido o acesso à cidade àquelas pessoas alheias à comunidade, sem razão que justifique a sua entrada e permanência neste município.

Parágrafo único – Os transeuntes que necessitarem passar pelo município de Gandu para chegar aos seus destinos, serão automaticamente liberados, inclusive podendo ser escoltados até os limites deste município.

Art. 8º – Qualquer pessoa que adentrar clandestinamente à cidade ou mesmo tentar fazê-lo, por qualquer meio (a pé, animal de montaria, bicicleta, motocicleta, automóvel), poderá ser interpelada pelos agentes do Comitê Gestor de Enfrentamento e Controle ao COVID-19, que adotarão as providências cabíveis e necessárias ao fiel cumprimento deste Decreto.

Consultada acerca do trânsito de automóveis particulares, a Prefeitura Municipal de Gandu, através do canal de diálogo criado para dirimir dúvidas a respeito dos decretos municipais, informou que a restrição de circulação estava imposta a veículos de qualquer natureza.

Por força do disposto no art. 5º, inciso XV, da CF/88, como regra, não há que se impor restrições à locomoção no território nacional: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Limitações excepcionais, no entanto, são possíveis, visto que se entende que os direitos fundamentais não são absolutos, conforme já exposto pelo Supremo Tribunal Federal:

Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. (MS 23.452, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5-2000).

Assim, é possível que direitos fundamentais sofram limitações temporárias, o que se aplica, inclusive, à liberdade de locomoção. Todavia, o impacto causado pela restrição de tais direitos exige a fixação de parâmetros mínimos, de modo que não haja desproporcionalidade nas medidas adotadas, o que não observamos no Decreto Municipal em questão.

Desse modo, a Medida Provisória n. 926, de 20 de março de 2020, responsável por alterar a Lei n. 13.979/2020, estabeleceu, dentre as medidas cabíveis para enfrentamento do coronavírus, a restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de locomoção interestadual e intermunicipal.

O texto da Medida Provisória também impôs que eventuais restrições devem resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, bem como vedou (i) a restrição de circulação de trabalhadores que possa afetar serviços públicos e atividades essenciais e (ii) das cargas necessárias ao abastecimento da população (art. 3º, §8º e §11, da Lei n. 13.979/2020).

Acrescente-se que, após a publicação da MP 926/2020, por meio da qual se conferiu à ANVISA a atribuição de emitir recomendação técnica sobre a restrição de rodovias, a referida Agência publicou a Resolução de Diretoria Colegiada n. 353, de 23 de março de 2020, que assim dispôs:

Art. 1º Fica delegada ao Órgão de Vigilância Sanitária ou equivalente nos Estados e no Distrito Federal a competência para elaborar a recomendação técnica e fundamentada de que trata a alínea “b” do inciso VI do art. 3º da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, com a redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 20 de março de 2020, relativamente ao estabelecimento de restrição excepcional e temporária por rodovias de locomoção interestadual e intermunicipal.

Desse modo, para que haja restrições entre rodovias que conectam municípios, deve existir recomendação técnica e fundamentada do Órgão de Vigilância Sanitária do respectivo Estado. Ocorre que o Decreto n. 019/2020, do Município de Gandu, não faz menção a nenhuma recomendação expedida pela Vigilância Sanitária do Estado da Bahia, carecendo, portanto, de base técnica.

Além disso, há relatos de pessoas que residem na localidade sobre o anúncio de uma imposição de isolamento obrigatório, sob fiscalização da guarda municipal, para aqueles que adentrarem na cidade oriundos de lugares onde existam casos confirmados de COVID-19, mesmo que estes não apresentem sintomas. A referida determinação encontra-se disposta no art. 3, § 2º, do Decreto n. 019/2020:

  • 2º – Os passageiros oriundos de localidades com casos confirmados de contaminação por coronavírus (COVID-19), ainda que não manifestem qualquer sintomatologia sugestiva de coronavírus, deverão permanecer em isolamento domiciliar pelo prazo de 15 (quinze) dias, sob supervisão da Secretaria Municipal de Saúde. (Grifo nosso)

Ante a inexistência de sintomas e de qualquer confirmação da COVID-19, é desproporcional e abusiva a limitação do direito fundamental à liberdade de ir e vir (art. 5º, XV, CF/88). Além de afrontar a Constituição, o parágrafo em comento ainda contraria a norma geral que a Lei 13.979/2020 estabeleceu sobre o isolamento, configurado nos seguintes termos pela Lei Federal: “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”. Ou seja, a aplicação do isolamento tem lugar quando identificadas pessoas doentes ou contaminadas, e não diante de qualquer cidadão assintomático.

Ex positis, a ANAJURE entende que o Decreto n. 019/2020, do Município de Gandu/BA, (i) limita indevidamente o direito fundamental à liberdade de ir e vir (art. 5º, XV, CF/88); e (ii) não possui fundamentação técnica que o sustente, incompatível, portanto, com o estabelecido pela Lei 13.979/2020 e pela Resolução n. 353, de 23 de março de 2020, da ANVISA, não estando apto a impor as restrições de acesso a que pretende.

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[1] http://www.gandu.ba.gov.br/detalhe-da-materia/info/prefeitura-publica-novos-decretos-com-fechamento-do-comercio-e-acessos-ao-municipio/6837

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