CASO 39 – Mococa/SP – Liberdade Religiosa

O que aconteceu: as atividades religiosas foram suspensas após decisões judiciais resultantes de ações ajuizadas pelo Ministério Público.

Onde: Mococa/SP.

Quando: 01 de setembro de 2020.

Documentos: Decreto Municipal n. 5.500/2020, de 25 de agosto de 2020Decreto Estadual n. 64.994, de 28 de maio de 2020, Decreto Estadual n. 64.881, de 22 de março de 2020, Decreto Federal n. 10.282, de 20 de março de 2020, Decreto Federal n. 10.292, de 25 de março de 2020 e Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Parecer da ANAJURE

A população do Município de Mococa/SP vem lidando com sucessivas mudanças no funcionamento de atividades que foram suspensas durante o período da pandemia, inclusive, as cerimônias religiosas. Em 08 de maio de 2020, foi editado o Decreto Municipal n. 5.412[i], que regulamentou o funcionamento de templos e igrejas e a realização de cultos, frente à inclusão destas no rol de atividades essenciais através do Decreto Federal n. 10.292, de 25 de março de 2020. Contudo, em 14 de maio de 2020, foi editado o Decreto Municipal nº 5.414[ii], por meio do qual o Prefeito de Mococa revogou o Decreto Municipal nº 5.412.

Em 19 de junho de 2020, o Decreto Municipal n. 5.433[iii] voltou a autorizar a realização de celebrações religiosas em Mococa/SP, além de outras atividades. De imediato, o Ministério Público pleiteou a suspensão dos Decretos que estabeleceram essas medidas, obtendo decisões favoráveis no Judiciário. No início de setembro, as atividades religiosas foram retomadas, mas as demandas judiciais ainda em curso podem gerar nova suspensão. Destacaremos a seguir alguns processos que geraram impactos no funcionamento das igrejas.

Processo n. 1001235-74.2020.8.26.0360 (Ação Civil Pública): Através de tutela antecipada recursal, o Ministério Público alcançou, nos autos do Agravo de Instrumento n. 2149854-39.2020.8.26.0000, a suspensão do Decreto n. 4.333/2020, que permitia a retomada das cerimônias religiosas observadas algumas cautelas, como lotação máxima de 30% do estabelecimento, disponibilização de álcool em gel, distância mínima de 2m, dentre outras. O Ministério Público alegou que o Decreto Estadual n. 64.994/2020, que instituiu o Plano São Paulo, veda, nos termos do Anexo III, o funcionamento das atividades não-essenciais que geram aglomeração, como seria o caso de igrejas e templos religiosos. Assim, o Executivo Municipal teria descumprido as disposições fixadas pelo Executivo Estadual por meio da edição do Decreto n. 5.433/2020.  Como resultado, o Prefeito de Mococa/SP editou o Decreto n. 5.437, de 03 de julho de 2020, que suspendeu os efeitos dos Decretos n. 5.431, 5.432 e 5.433, que permitiam a retomada das atividades religiosas e de outros setores.

Processo n. 10011821-14.2020.8.26.0360 (Ação Civil Pública): Nesse processo, o Ministério Público busca a suspensão do Decreto n. 5.500, que permitiu a retomada de algumas atividades, dentre elas, as cerimônias religiosas. Sobre isso, o MP esclareceu que, nestes autos, não pleiteava a restrição das atividades religiosas, visto que a matéria está sendo discutida no processo n. 1001235-74.2020.8.26.0360. A decisão que deferiu o pedido de liminar feito pelo MP ordenou a suspensão de estabelecimentos com funcionamento autorizado pelo Decreto n. 5.500, como academias de esportes, centros de ginástica, salões de beleza, dentre outros; as igrejas não foram mencionadas. Porém, intimado da decisão, o Município expediu o Decreto n. 5.506, de 01 de setembro de 2020, suspendendo os efeitos do Decreto n. 5.500, que tinha permitido o retorno das cerimônias religiosas, além de outras atividades.

Frente a tais pretensões do Ministério Público, faz-se necessário destacar a ampla proteção que alcança a liberdade religiosa, consagrada na Declaração Universal de Direitos Humanos/1948 (art. 18); no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/1966 (art. 18, item 1); Pacto de San José da Costa Rica/1969 (art. 12, item I); na Constituição Federal/1988 (art. 5º, inciso VI).

Como regra, portanto, temos a proteção à liberdade religiosa, no que se inclui a realização dos cultos públicos. Excepcionalmente, contudo, algumas limitações podem ser aplicadas. É o que estabelecem, de modo praticamente idêntico, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 18, item 3) e o Pacto de San José da Costa Rica (art. 12, item 3). Nos termos desses diplomas, a liberdade de manifestar a própria religião e crenças está sujeita apenas às limitações prescritas pelas leis e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde, ou moral pública ou os direitos ou liberdades das demais pessoas.

Na jurisprudência brasileira, também já restou assentado que os direitos fundamentais não são absolutos[iv]. No entanto, embora os direitos fundamentais não se revistam de um caráter absoluto, eventuais restrições que recaiam sobre eles devem ser excepcionais e respeitar as disposições do texto constitucional. Em tais hipóteses, é imprescindível que as limitações sejam aplicadas da forma menos gravosa possível, buscando-se observar o núcleo essencial dos direitos fundamentais.

Apresentado esse panorama, cabe analisarmos as alegações feitas pelo Ministério Público em prol da suspensão das atividades religiosas. Conforme o entendimento do parquet, a Prefeitura Municipal de Mococa teria invadido competência estadual ao afastar, sem necessária fundamentação científica, restrições colocadas pelo Governo de São Paulo através do Decreto Estadual n. 64.994, de 28 de maio de 2020, que instituiu o Plano São Paulo, afrontando o pacto federativo.

Primeiramente, explanemos alguns pontos referentes à legislação paulista aplicável durante a pandemia. O Decreto Estadual n. 64.881, que instituiu a quarentena no Estado, expôs, em seu artigo 1º, incisos I e II, e parágrafo 1º, o escopo de atividades suspensas e daquelas mantidas por serem essenciais:

Artigo 2º – Para o fim de que cuida o artigo 1º deste decreto, fica suspenso:

I – o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas, “shopping centers”, galerias e estabelecimentos congêneres, academias e centros de ginástica, ressalvadas as atividades internas;

II – o consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados, sem prejuízo dos serviços de entrega (“delivery”) e “drive thru”.

§ 1º – O disposto no “caput” deste artigo não se aplica a estabelecimentos que tenham por objeto atividades essenciais, na seguinte conformidade:

  1. saúde: hospitais, clínicas, farmácias, lavanderias e serviços de limpeza e hotéis;

  2. alimentação: supermercados e congêneres, bem como os serviços de entrega (“delivery”) e “drive thru” de bares, restaurantes e padarias;

  3. abastecimento: transportadoras, postos de combustíveis e derivados, armazéns, oficinas de veículos automotores e bancas de jornal;

  4. segurança: serviços de segurança privada;

  5. comunicação social: meios de comunicação social, inclusive eletrônica, executada por empresas jornalísticas e de radiofusão sonora e de sons e imagens;

  6. demais atividades relacionadas no § 1º do artigo 3º do Decreto federal nº 10.282, de 20 de março de 2020. (Grifo nosso)

De imediato, não se observa explicitamente listada no rol apresentado a realização de cerimônias religiosas, quer dentre as atividades suspensas, quer dentre as atividades a serem mantidas. Contudo, em seu artigo 2º, parágrafo 1º, item 6, o Decreto Estadual n. 64.881 inclui em seu rol de atividades essenciais aquelas relacionadas no artigo 3º, parágrafo 1º, do Decreto Federal nº 10.282, de 20 de março de 2020. O Decreto Federal nº 10.282, por sua vez, faz menção, no rol de atividades essenciais, às atividades religiosas, conforme se extrai do art. 3º, parágrafo primeiro, inciso XXXIX:

Art. 3º As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 2020, deverão resguardar o exercício e o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 1º.

§ 1º São serviços públicos e atividades essenciais aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como:

(…)

XXXIX – atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde;

Assim, podemos depreender que não houve, da parte do Governo do Estado de SP, uma proibição no tocante às atividades religiosas, existindo, na verdade, a inclusão no rol de atividades essenciais. É possível questionar, então, se o panorama foi modificado pelo Plano São Paulo. Analisemos, então.

O Plano São Paulo[v] é um projeto de racionalização da retomada das atividades não-essenciais através da flexibilização da quarentena instituída pelo Decreto Estadual n. 64.881, de 22 de março de 2020. Deste modo, as regiões com situação sanitária mais grave mantêm as restrições de quarentena nos termos do referido diploma, que podem ser levantadas gradualmente na medida em que haja avanços no combate à pandemia, em conformidade com o Plano. Conforme é possível verificar no site da diretriz estadual, há parâmetros diferenciados para cada setor. Traremos alguns exemplos abaixo:

Consultando a íntegra do Decreto n. 64.994/2020, percebe-se que não há menção às atividades religiosas. A única referência existente acerca das atividades religiosas é feita pelo Decreto n. 64.881/2020, que consagra como atividade essencial as listadas pelo Decreto Federal n. 10.282/2020, o que engloba as religiosas. Ou seja, em nenhum momento o Governo de São Paulo proibiu o funcionamento das igrejas. Essa informação, inclusive, pode ser extraída da sessão de perguntas e respostas frequentes sobre a quarentena, na qual o Estado paulista explicitou a existência de recomendação, mas não mencionou proibições ao funcionamento dos templos[vi]:

Além disso, o portal virtual do Plano São Paulo disponibiliza protocolos sanitários setoriais confeccionados pela Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo em parceria com representantes de diversos setores. O protocolo vigente para as atividades religiosas[vii], contrariamente ao exposto pelo Ministério Público, não trouxe uma proibição geral das atividades religiosas. Por meio do documento, o Estado trouxe algumas recomendações voltadas à diminuição do risco de contágio com o coronavírus. Importa observar que todas as medidas apresentadas ao longo do Protocolo Sanitário Setorial para Atividades Religiosas são colocadas não como determinações, mas sim como recomendações:

Portanto, observa-se que o Plano São Paulo compreende que a realização ou não dos cultos religiosos presenciais é uma faculdade das organizações religiosas, que deve ser considerada com toda a cautela, observando-se as medidas de prevenção cabíveis. Sua suspensão, porém, é uma recomendação do Estado de São Paulo, não uma imposição derivada do Plano São Paulo.

Apesar disso, o Ministério Público sustenta que houve vedação ao funcionamento dos templos religiosos. A posição do parquet pela impossibilidade de realização das atividades religiosas fundamenta-se em sua compreensão de que estas estariam inclusas no grupo de “demais atividades que geram aglomeração” (ver tabela acima do Plano SP), cuja suspensão instituída pela quarentena do Decreto Estadual n. 64.881 não é relativizada pelos parâmetros do Plano São Paulo durante a progressão do combate à pandemia. O efeito prático de tal entendimento é: shoppings, bares, restaurantes, academias, eventos culturais e outras atividades chegariam a funcionar com até 60% da capacidade dos respectivos estabelecimentos e as atividades religiosas ainda estariam plenamente vedadas, numa nítida ofensa à isonomia. Essa interpretação se distancia não somente da razoabilidade e da proporcionalidade, mas também do que dispõem os próprios Decretos estaduais e os documentos do próprio Plano São Paulo, como demonstrado.

Vislumbra-se, assim, ser infundada a pretensão do Ministério Público voltada à suspensão dos Decretos que permitiram a retomada das atividades religiosas no Município de Mococa. Os Decretos Municipais não contradizem o disposto pela legislação estadual no tocante aos serviços religiosos; ao contrário, realizam o determinado pelo Decreto Estadual n. 64.881 ao regulamentar o funcionamento dos templos e cultos, inclusos no rol de atividades essenciais.

Frise-se, ainda, que nos Decretos em que o Município de Mococa permitiu a retomada das atividades religiosas não houve uma flexibilização abrupta. Na verdade, o Executivo municipal trouxe diversos parâmetros a serem observados pelas igrejas, como a lotação máxima de 30% da capacidade do templo, distanciamento máximo de dois metros, aferição de temperatura corporal, dentre outros. A tentativa do parquet de suspender as atividades religiosas, ao contrário, não guarda a devida proporcionalidade que deriva da busca por compatibilizar as diversas liberdades fundamentais.

Pelo exposto, a ANAJURE informa que encaminhará Ofício sobre a temática ao Ministério Público de SP e solicitará ingresso como amicus curiae no Agravo de Instrumento n. 2149854-39.2020.8.26.0000, em trâmite perante à 4ª Câmara Cível de Direito Público do TSJP, sustentando o entendimento apresentado.

____________________________

[i] Disponível em: http://portal.mococa.sp.gov.br/covid19/upload/159829355459.pdf. Acesso em: 17 set. 2020.

[ii] Disponível em: https://dosp.com.br/exibe_do.php?i=MTA4NTMw. Acesso em: 17 set. 2020.

[iii] Disponível em: https://dosp.com.br/exibe_do.php?i=MTE0NTEx. Acesso em: 17 set. 2020.

[iv] MS 23.452, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5-2000

[v] https://www.saopaulo.sp.gov.br/planosp/

[vi] Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/coronavirus/quarentena/. Acesso em: 04 set. 2020.

[vii] Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/protocolo-atividades-religiosas-v-03.pdf. Acesso em: 23 set. 2020.