Nota sobre as alegações de ocorrência de homofobia no discurso do Ministro da Educação, Milton Ribeiro

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, vem, no uso de suas atribuições estatutárias, emitir a presente Nota sobre as acusações de cometimento de crime de homofobia pelo Ministro da Educação, Milton Ribeiro, em entrevista concedida ao Estadão.

No dia 24 de setembro, o Ministro Milton Ribeiro concedeu entrevista ao Estadão e tratou de temáticas diversas, como o retorno às aulas, a pandemia e questões relativas à homossexualidade. Em determinado trecho, o Ministro associou a homossexualidade a um contexto familiar desajustado, onde há ausência da figura do pai e da mãe. Também afirmou que vê com reservas a presença de professor transgênero em sala de aula que faça “propaganda aberta” da transgeneridade. As falas repercutiram na mídia, gerando a acusação de prática de homofobia, e ocasionaram a apresentação de notícia-crime ao STF pelo Senador Fabiano Contarato[1].

A discussão sobre o cometimento de homofobia vem acompanhada do debate acerca dos limites da liberdade de expressão. Sobre esse direito, vale citar a sua ampla proteção em âmbito internacional e nacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe em seu art. 19 que: “todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”. De modo semelhante, dispõe o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 19) e o Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 13). A Constituição Federal de 1988 fixa que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, inciso IV).

A exemplo dos outros direitos fundamentais, no entanto, a liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser limitada pela lei quando necessário ao respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas, à proteção da segurança nacional, da ordem, da saúde e da moral pública (art. 19, item 3, do PIDCP e art. 13, item 2, CADH). Nesse sentido, durante os debates relativos à criminalização da homofobia, ocorridos na ADO 26, a ANAJURE sustentou a proteção à liberdade de expressão e à liberdade religiosa, ressalvando que o exercício desses direitos não deve resultar em agressões às pessoas LGBT[2]. Na época, afirmamos:

Põe-se em relevo, nessa seara, que não são englobadas no âmbito da liberdade religiosa, nem se pretende que sejam, as condutas que imponham a qualquer indivíduo, seja homem ou mulher, heterossexual, homossexual ou transexual, situação humilhante, vexatória ou que busque sua exploração, escravização ou eliminação, visto que não se compatibilizam com o princípio norteador do sistema constitucional brasileiro: a dignidade da pessoa humana[3].

Com o desenrolar do processo, houve, por parte do STF, o reconhecimento da mora do Legislativo em regulamentar sanções para as condutas homotransfóbicas e a determinação de que, enquanto não houver norma específica sobre a matéria, sejam aplicadas as disposições da Lei n. 7.716/1989. Na ocasião, a Corte[4] também se posicionou sobre a liberdade de manifestação do pensamento, explicitando que:

O verdadeiro sentido da proteção constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas) que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade. O casoUnited States v. Schwimmer” (279 U.S. 644, 1929): o célebre voto vencido (“dissenting opinion”) do Justice OLIVER WENDELL HOLMES JR. (Grifos do autor).

Ou seja, a liberdade de expressão também alberga manifestações que geram contrariedade e, até mesmo, repúdio pela sociedade. Não se trata, portanto, de instrumento para uniformização da sociedade, mas de mecanismo garantidor da pluralidade. Segundo a Corte, ainda na ADO 26, há a necessidade de construir espaços de liberdade em que o pensamento não seja reprimido e que, “longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo e à tolerância” (grifo do autor). Nesse sentido, frise-se que não há tolerância quando todos pensam do mesmo modo, e sim quando perspectivas diferentes colidem. Desse modo, depreende-se que a decisão do Supremo não criminalizou o pensamento ou a discordância, impondo limites, apenas, às condutas que extrapolam a licitude e estimulam agressões e hostilidades.

No caso em apreço, o pronunciamento do Ministro Milton Ribeiro, ainda que gere repúdio aos que se alinham às pautas LGBTs, não materializou incitações ao ódio contra homossexuais e transgêneros. Quando o Ministro menciona os desajustes familiares associados à homossexualidade, não o faz sustentando qualquer hostilidade que se deva praticar contra os homossexuais. A vinculação entre o contexto familiar e a homossexualidade, inclusive, é temática que vem sendo investigada e discutida no meio acadêmico a partir de distintas vertentes[5]. Ademais, ao discorrer sobre a presença em sala de aula de professor transgênero, novamente, não estimulou a adoção de postura agressiva contra pessoas LGBT, apenas manifestando a preocupação com o conteúdo ensinado nas escolas, debate este que vem sendo travado na esfera pública brasileira e que, por si só, não denota crime de homofobia.

Diante do exposto, vale citar precedente do STF em que se avaliou o cometimento do crime tipificado no art. 20 da Lei 7.716/2020. A Corte utilizou como critério para analisar o caso a ocorrência das seguintes etapas[6]:

  1. Etapa de caráter cognitivo: atesta-se a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos;

  2. Etapa de viés valorativo: assenta-se suposta relação de superioridade entre grupos e/ou indivíduos;

  3. Etapa discriminatória: o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.

O crime previsto no art. 20 da Lei n. 7716/1989 só estaria presente, conforme se entendeu no RHC 134.682, quando praticadas as três etapas acima listadas. Das declarações do Ministro Milton Ribeiro, no entanto, não se extrai um discurso que perfaça as fases elencadas. Sem isso, não se materializa a etapa discriminatória e resta ausente o elemento do dolo específico, considerado pela jurisprudência pátria como imprescindível à configuração da conduta penal prevista no art. 20 da Lei n. 7716/1989: “para configuração do delito previsto no art. 20 da Lei Federal n. 7.717/89 exige-se, além do dolo, o elemento subjetivo específico consistente na vontade de discriminar a vítima” (STJ – AgRg no REsp: 1817240 RS, Relator: Min. Joel Ilan Paciornik, Data de Julgamento: 24/09/2019, Quinta Turma).

Ex positis, a ANAJURE entende pela impossibilidade de caracterizar o discurso do Ministro Milton Ribeiro como crime de homofobia, sustentando, assim, que o protocolo de notícias-crime e de outras iniciativas tendentes a criminalizar as declarações do Ministro não merecem prosperar, uma vez que os limites da liberdade de expressão não foram extrapolados.

Brasília-DF, 26 de setembro de 2020.

Dr. Uziel Santana
Presidente da ANAJURE

Dr. Felipe Augusto
Diretor Executivo da ANAJURE

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[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/senador-ministro-educacao-seja.pdfv. Acesso em: 25 set. 2020.

[2] https://anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-a-tese-firmada-no-julgamento-da-ado-26-relativa-a-criminalizacao-da-homotransfobia/

[3] https://anajure.org.br/anajure-emite-nota-publica-sobre-a-tese-firmada-no-julgamento-da-ado-26-relativa-a-criminalizacao-da-homotransfobia/

[4] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26ementaassinada.pdf. Acesso em: 25 set. 2020.

[5] Exemplos, nesse sentido, são as seguintes publicações:

KANAZAWA, S. Father absence, sociosexual orientation, and same-sex sexuality in women and men. International Journal of Psychology. Disponível em: http://personal.lse.ac.uk/kanazawa/pdfs/IJP2020.pdf. Acesso em: 26 set. 2020.

FITIZGIBBONS, R. P. Growing up with gay parentes: What is the big deal? The Linacre Quartely. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4771005/. Acesso em: 26 set. 2020.

PEREIRA, V. S.; OLIVEIRA, T. F. R.; NUNES, M. V. A importância do pai na formação psíquica dos filhos. Múltiplo Saber. Disponível em: https://www.inesul.edu.br/revista/arquivos/arq-idvol_52_1513263398.pdf. Acesso em: 26 set. 2020.

[6] STF, RHC 134.682, Min. Rel. Edson Fachin, Primeira Turma, Data do julgamento: 29.11.2016.